terça-feira, julho 03, 2007

buracos

caio sempre no mesmo buraco. mudo de rua, de passeio, de cidade, mas o buraco irrompe invariavelmente entre os passos e as passas e, fatalidade suprema, vou sempre ao chão. estava limpo, é o que vale. também não houve grande alarido, nem sangue à fartura. com o andar das coisas, ou seja, com o multiplicar dos buracos, a carapaça vai endurecendo e eu já não choro tanto.

tenho que me levantar outra vez. talvez mude de rua, de passeio ou mesmo de cidade. já pressinto um outro buraco mais à frente, subtil na sua sevícia, mas não posso ficar no chão. não devo. não quero.

vou respirar fundo, fechar os olhos e avançar uma vez mais. nesta fase, começo a escrever filosofia e chego à minha primeira sábia conclusão: não vale a pena ir de olhos bem abertos; os buracos são inevitáveis.


imagem: [«Aqui», Rui j Santos]

sábado, fevereiro 03, 2007

depois

um tsunami altera sempre qualquer coisa. e então quando as nossas vidas, pacatas e familiares, divididas entre as compras do fim-de-semana, os jantares de família e os cafés no sítio do costume, se vêem, de repente, envolvidas num as consequências podem ser – e são sempre, de certa maneira – desastrosas.

vem isto a propósito das folhas que caem no meu quintal. ou melhor ainda das árvores que ali continuam completamente despidas de cor.

a ruptura das relações conduz-nos sempre a uma estrada estranha, com curvas sinuosas e destino incerto. podemos até seguir no conforto do carro de sempre, mas os cheiros e as cores são sempre diferentes. o ambiente sufoca-nos num caminho que preferíamos não ter que percorrer.

quanto de coragem e de força teremos que angariar para que o mundo volte a sorrir?

imagem: [«Horizontes», António Manuel Pinto da Silva]

sexta-feira, janeiro 26, 2007

'volver'

o som salgado invade o espaço e as ondas de calor louco resultam numa explosão de adrenalina delirante.

às vezes sinto-me assim. uma confusão de palavras, misturadas como café e leite, sem fio condutor, onde o que conta não é o conjunto, mas a emoção que cada uma importa.

desta vez, o som serviu para festejar, ironicamente, a paz que já há alguns dias eu não era capaz de inventar. agora, devagarinho, quero reaprender a distinguir as sete cores do arco-íris.
imagem: ['Ainda grafismos', António Manuel Pinto da Silva]

sexta-feira, janeiro 12, 2007

a fórmula de Deus

terminada uma complexa leitura pelos campos da matemática, da física e da metafísica, respiro finalmente. esta fórmula de Deus – não o Deus da Bíblia, claro está – é uma viagem alucinante por caminhos tão circunspectos e sinuosos que, por vezes, me vi tentado a retardar caminho e gozar do descanso de outras leituras acocorado à beira da estrada.

uma leitura activa, interessada e curiosa demora largos dias. para um leigo como eu, perfeitamente ignorante à vista da sabedoria do Universo, a assimilação de teorias e teorias, testadas e comprovadas por equações e fórmulas matemáticas, pode ser – e é garanto-vos eu – uma árdua tarefa.

no final, contudo, e como em poucos livros, dei por mim a reflectir sobre o universo e o papel do homem no mundo. e senti-me ainda mais pequenino e amedrontado. a teoria do universo efémero, do Alfa e do Ómega, da inteligência artificial, do determinismo das coisas, do hardware e do software, são realidades tão distantes ao comum dos mortais, mas tão verdadeiras à luz do conhecimento, que, no mínimo, chocam e afligem.

para lá disso, dessa intensa leitura, fica a verdade maior, a única que talvez sirva o sumário da aula: tudo tem um princípio e um fim, mas no instante da vida a busca do homem não fará qualquer sentido se a ela não adicionarmos a causa do amor.
imagem: [Sem título, Luis Pereira]

sábado, janeiro 06, 2007

abraço

as euforias já lá vão e agora a visão do futuro encolhe-se, nunca se sabe o dia de amanhã, e dedica-se exaustivamente a sentir o tempo de cada dia.

dispomos de todos os prazeres que nos oferecem as comodidades de um país do mundo desenvolvido, atente-se na ironia da nomenclatura, e delas fazemos gala e sobre elas registamos críticas no Livro de Reclamações amarelo.

contudo, apesar de tudo isso e de tudo isso ser possível, só o impossível me faria sorrir: o teu abraço fechado.
imagem: [«... se mergulhares, murgalharei contigo», Carla Salgueiro]

sexta-feira, dezembro 29, 2006

anos passados

Dezembro 2006
no término do calendário ocidental vem o frio de Dezembro e com ele o inventário, tão certo quanto banal, dos gelos e degelos do ano moribundo. confesso-me perdido. o tempo servido em bandejas de incerteza levou-me a conhecer um mar diferente. hoje, os sonhos já não têm as cores de criança e as verdades doem mais do que as feridas. neste momento, qual barco à deriva, apenas quero descobrir um cais onde me abrigar. depois chorarei. talvez sejam estas as tempestades de que falavam os sábios e os anciãos. entretanto, talvez consiga aprender a ser feliz.

Dezembro 2005
à beira de novo salto, reconheço a poesia das metáforas: gosto de cais diferentes, na ânsia da descoberta e da aventura que novas terras sabem oferecer, mas não consigo esquecer que, por força das amarras, é sempre o mesmo navio que navega, ano após ano, independentemente das marés, dos faróis e das estrelas-do-mar que, ao lado do casco, nos vão clareando o cabelo.

Dezembro 2004
apanhado de surpresa pela fúria dos acontecimentos, acabei engolido pelo tempo. quando dei por mim já lá ia uma semana inteirinha sem plateia, sem teatro, sem palavras. apenas a vida. nua e dura. o trabalho, as reuniões, as iniciativas, os preparativos para tudo e para nada, a busca de sonhos, a realização de outros, horas, minutos, segundos tão fugazes como a vida. e hoje, qual peça trágico-cómica, dizem-me que acabou mais um ano. e assim é.
imagem: [«olhares de carinho», Fernando Leão]

sexta-feira, dezembro 15, 2006

manhãs

os dias têm verdades muito diferentes. se há manhãs em que na esfera celeste se adivinham novas formas de canto, outras há em que até o chilrear dos pássaros nos parecem gritos aflitivos. as árvores podem ser demónios entrelaçados com a terra ou apenas e só o belo quadro de um pintor renascentista. os olhos da nossa alma gostam de diversificar as cores, detestam a monotonia dos lugares e transformam-nos.

por isso quando me apetece chorar, choro. quando me apetece rir, rio. sei que os momentos passam como as gotas da chuva e que as emoções são tão inconstantes como as ondas do mar. nunca sabemos quando nos vão molhar os pés ou se, tão simplesmente, adormecem lá longe.

é Inverno.
e de vez em quando o sol também brilha.
imagem: ["Nascer do sol", de Rui Santos]