quarta-feira, dezembro 28, 2005

neo-


com o final dos dias vem sempre a conferência das horas, dos minutos e dos segundos que, com este corpo e esta alma, fomos gastando por aí, em retiros e clareiras mais ou menos conhecidos, mais ou menos sentidos, mais ou menos vividos.

ao chegar a esta fase diria a grande maioria a célebre frase “é a vida”, popularizada pelas manhãs de sol ou de chuva, pelas tardes de calor e de frio, pelas noites de solidão e de prazer.

acaba-se a circunferência que delimita o número que se regista como ano e perde-se dentro dela a vida, os momentos e tudo aquilo que, sem se dar conta, foi vincando em nós os dias e as marcas, os beijos e os abraços, as lágrimas e os murros.

à beira de novo salto, reconheço a poesia das metáforas: gosto de cais diferentes, na ânsia da descoberta e da aventura que novas terras sabem oferecer, mas não consigo esquecer que, por força das amarras, é sempre o mesmo navio que navega, ano após ano, independentemente das marés, dos faróis e das estrelas-do-mar que, ao lado do casco, nos vão clareando o cabelo.

feliz ano novo.
imagem: ["salto", David Felix, 22.10.03]

terça-feira, novembro 22, 2005

no silêncio do olhar

angústia e revolta. à minha frente um buraco negro, fechado numa circunferência de metal, dita-me, sem piedade, um futuro que já não é este, mas outro. diferente, sempre diferente.

por dentro ferve uma revolta contida, azedasse-me o olhar e sinto picos de dor dentro da minha cabeça. não está nas minhas mãos [nestas mãos a quem devo a obra] moldar o rio que, enfurecido, se estende na minha direcção.

impotente, aqui fico. espero de pé, mas sou incapaz de não chorar. a frieza dos números são gelo dentro de mim. há um corpo e sangue quente aqui! mas parece que ninguém se lembra...

sinto-me marioneta anónima à espera da dor final, carimbada e assinada como na Idade Média. tento erguer a armadura da maturidade, mas, por mais que me esforce, são as lágrimas que me vencem.

foto: ["silêncios de um olhar", António Araújo, 13.07.05]

domingo, novembro 20, 2005

a biografia dos perfumes


leio a biografia da grande menina [“Mademoiselle Chanel”] nos lábios, na voz e nos gestos da grande senhora [Marília Pêra]. em palco o glamour e o talento reflectem-se nas palmas do público.

da vida [e do texto] uma conclusão: o importante não é amar para viver. antes viver para amar. tudo e todos.

o pano ainda está aberto, os projectores pintam as tábuas de azul e o céu da solidão que pinta o cenário de branco devolve-nos a imagem dos espelhos.

porque o teatro é sempre um mar por desbravar. mais ainda porque é domingo e lá fora chove, criando lagos perfeitos para as caravelas da nossa imaginação.

quinta-feira, novembro 17, 2005

...


a saber: as flores mesmo sem pétalas não deixam de ser flores. podem perder a arte, mas não deixam de alimentar as abelhas.
e há [acreditem, há!] pessoas assim: como flores e como abelhas.
foto: [Paulo Medeiros, 17.10.05]

segunda-feira, novembro 14, 2005

delicioso crime

deixei-me tentar. fui, vi e gostei.

excelentes desempenhos, pormenores de fotografia notáveis e uma realização (de Carlos Coelho da Silva) ao nível do que melhor se tem feito no país e no estrangeiro. assumidamente comercial, não deixa de abanar consciências e dar umas dentadas na hipocrisia eclesiástica. não deixa de ser corajosa esta conseguida eliminação dos tabus pela [sétima] arte.
o país [cultural] está de parabéns. por mais irónico que, socialmente, isto pareça ser.

quarta-feira, novembro 09, 2005

a alegoria do poeta

«Em breve há que atingir o vazio / da memória e nela persistir. Até que / livre das máscaras que nos corpos fui / venha, última, a surdez das vozes».
Orlando Neves

vinha escrito numa página de jornal, a preto e branco [como um verdadeiro jornal], sujando os dedos de carvão. não era destaque, mas, pelo menos, vinha noticiado: a morte das palavras. desconheciam-se as causas e os locais. apenas aquela certeza inaudita.

no dia seguinte, o jornal não se publicou. também não houve processo instrutório, julgamento ou acusação. o mundo calou-se. a voz perdeu o tom, as coisas perderam nome e os significados deixaram de fazer sentido. como num fado mudo, a canção do nada invadiu o céu, as poças de água e as chávenas do café.

suicidaram-se os poetas, choraram, desolados, os que sonhavam e os loucos deixaram de se sentir crianças. no silêncio dos dias seguintes o incógnito assassino viu-se, sem saber porquê, a morrer de solidão.

segunda-feira, novembro 07, 2005

como um vulcão

« Au cours de la nuit de dimanche à lundi, la 11ème de violences urbaines, 1.408 véhicules ont été incendiés et 395 personnes ont été interpellées en France, (…) le plus lourd depuis le 27 octobre. »
par Patricia Tourancheau, Libération: lundi 07 novembre 2005

são às centenas as feridas queimadas pelo fogo num desejo, absurdamente justo, de justiça. as televisões dão-nos as imagens, mas jamais nos darão os corações, a fome ou a discriminação. por fora do globo mostra-se, hoje, o que há muito queima por dentro. como um vulcão

sábado, novembro 05, 2005

ocaso

chego ao fim dos actos com um sorriso roubado ao orgulho.

sei que será talvez hoje o dia de mais um fim. o ocaso de uma história que, ao longo do último ano, viveu lado a lado com a minha, absorvendo o mesmo ar, cultivando as mesmas memórias, dando lugar às mesmas tristezas e alegrias.

hoje, de cima do palco, receberei, talvez, as últimas palmas devidas a este lugar e a esta gente. assino hoje [assinamos todos] o divórcio destas palavras que, semana após semana, se ouviram com a nossa voz e se soltaram por aí ao encontro das lágrimas que, sentidas, foram surgindo.

procuraremos novas cores, novas flores, novas auroras por aí. outras palavras se acharão ao nosso lado e os olhares e o corpo serão livres de novos amores. é a vida do teatro e dessas personagens inquietas que são os actores.

apagam-se os sons, fecham-se as luzes, o acto acabou. aos que nele souberam acreditar, viver, sorrir e chorar, deixo um coração feliz. roubo à plateia um último abraço fechado e dou por encerrado este céu que, esta noite, se fecha por cima de nós. definitivamente, não estou triste, mas não consigo evitar já uma lágrima de saudade.
foto: ["entre vocês me despeço...", Susana Ribeiro, 01.11.05]

quinta-feira, novembro 03, 2005

quando o céu também chora

gosto de ouvir os desabafos do tempo. quando ele, por entre as rajados do vento norte, traz até mim as recordações da criança que já fui. que brincava entre as árvores do quintal, indiferente à chuva e aos ralhetes da avó Maria.

até ao dia em que o céu chorou comigo. o meu balão vermelho rebentou contra o espinho de uma roseira que, todos os dias, me cumprimentava no caminho de terra batida, entre a minha casa e a quinta lá em cima. chorei como a criança que era.

o tempo ficou ainda mais triste. e a chuva, até ao fim da viagem, dançou no meu rosto com o sal da minha tristeza. criando em mim caminhos sem tempo e sem destino, que, triste, ainda hoje escuto, "numa dor que nunca cabe e faz transbordar os dias" [Mafalda Veiga].
foto: ["limite", simone, 16.08.05]

terça-feira, novembro 01, 2005

o dia de cada coisa

recebo da invernia as bofetadas do vento e as carícias agrestes das ondas do mar de quando em vez. vou, por ali, como relógio decidido, rebuscando nos passos as incertezas, vivas pela dor, que a alma teima em alojar. gosto de pensar que o mar poderá ser um dia o lar das minhas feridas. por isso vou.

vejo à porta do cemitério uma invulgar agitação. amontoam-se os carros e as pessoas, de flores e guarda-chuva nas mãos. ah, pois, hoje é dia de finados! o dia em que todos nos lembramos de “visitar” os entes queridos que, pela lei da vida ou contra ela, já se finaram.

estranho, no mínimo. há um dia para cada coisa importante na nossa vida: dia da mulher, do pai, da mãe ou até dos avós; dia dos direitos do homem, da luta contra o cancro; dia da árvore, da criança, de Portugal e de todos os santos. dias que aproveitamos para, a reboque da comunicação social, reflectir, comprar um presente ou levar a efeito uma leitura mais exaustiva sobre o assunto em destaque. como se, para além dessas datas, nos nossos dias tão ocupados, as pessoas que amamos e as coisas importantes da vida não tivessem a importância que merecem.

ao escutar as gaivotas preocupadas – em terra que o mar está agitado –, procuro no calendário, desenhado na areia, o dia do riso: o dia em que, talvez, tivéssemos coragem de rir de nós próprios. e assim fui e voltarei a ir todos os dias, porque sem o mar desta cidade a minha vida não teria a mesma cor.
foto: ["o nosso mar...", Cristina do Vale e Vasconcelos, 21. 10.05]

domingo, outubro 30, 2005

since Outubro 30

“O pano já subiu. Agora sou só eu e o público. Eu e vocês. Neste teatro das palavras.”

há um ano o teatro abria assim. hoje, sem mais, assim há-de continuar. o que aqui se disse, o que aqui se escreveu é já memória, arquivo morto. a crítica há-de dizer-se ou escrever-se um dia. por agora, assumem-se os erros, limpam-se os fatos, aprumam-se os adereços, relembram-se as deixas e, como há um ano atrás, sonha-se.

a festa faz-se, de novo, logo à noite, quando, uma vez mais, se voltarem a abrir as cortinas. quando, por entre os rompimentos, gente, de corpo e alma, se entrega, de novo, ao momento e à magia do palco. construindo infinitos sonhos em pequenos espaços de tábuas, entre um cenário e um projector. entre uma voz e um suspiro breve.

palmas, queríamos palmas e as palmas tivemos. por elas, obrigado. por nós, as palmas vai continuar a dançar nos esconderijos deste teatro. sempre com emoção.

sexta-feira, outubro 28, 2005

escada


estava ali. tinha atrás de si mais de duas centena de degraus e à sua frente pouco mais de meia centena. estava, por assim dizer, numa posição confortável. naquele patamar almofadado, os ecrãs LCD transmitiam-lhe memórias vividas desde o início da subida: a determinação, os obstáculos, as raivas, os nervos, as angústias, os sorrisos, as palmas, as palavras, os panos que se abriram e fecharam, semana após semana, defronte às plateias.

uma subida gloriosa, dirão alguns. podia continuar a subida, vir a descobrir o que fica para lá do último degrau – o “degrau dourado” –, saber na pele o sonho de tantos.

naquele momento, tomou uma decisão: iria voltar a descer. “Estás louco?”, perguntaram-lhe os companheiros da viagem. “Estarei? Lá em baixo posso, de novo, voltar a sonhar com a subida. Daqui para a frente é sempre igual.”

na verdade, o que ele tinha era medo de estar por cima das nuvens; ele que tanto gostava de chuva.

terça-feira, outubro 25, 2005

a conspiração

depois d'"O Código Da Vinci" e de "Anjos e Demónios" o génio de Dan Brown está de regresso. "Conspiração" é título do novo livro que junta "um meteorito, a NASA, o Ártico, e o presidente dos EUA".

pelo que me toca, depois do embalo que foi o "Código" e o fascínio que me provocou "Anjos e Demónios" [que considero genialmente bem escrito], já dei mais um pequeno arrombo no orçamento para trazer esta "conspiração" para a biblioteca cá de casa.

para já, quem em nada se pode queixar é a Bertrand Editora que descobriu em Dan Brown a sua galinha dos ovos de ouro numa relação que, segundo se consta, está para durar.

quanto a mim, vamos ver quanto tempo resisto à tentação daquelas páginas... e se a elevada expectativa encontra reflexo na realidade.

segunda-feira, outubro 24, 2005

o estado da nação e a máquina do tempo

cheguei a uma triste conclusão: o país está mesmo a andar para trás [dirão alguns: mais vale tarde do que nunca].
mas, atentando bem, a frase para além de verdadeira num sentido metafórico, não deixa de perder significado mesmo quando levada à letra. reparem: estamos a andar tão para trás que até os políticos de há dez anos estão todos, de novo, na ribalta.

alguém se importa de pôr a máquina do tempo a trabalhar ao contrário?

e, assim sendo, não sei se me penitencio ainda mais ou se me levanto e rio.

levanta-te e ri

o popular programa de humor da sic está, esta noite e pela terceira vez, de volta ao grande auditório do cae. tinha tudo para lá estar hoje, outra vez na primeira fila. afinal, rir ainda é um bom remédio e, de facto, os programas ao vivo são bem mais interessantes do que na televisão.
mas, confesso-vos, hoje não me apetece e, assim sendo, não vou e ponto final

penitência

a nossa vida nem sempre é aquilo que queremos, mas é com ela, com tudo o que tem de bom e de mau, que temos de viver todos os dias.

sou pois acusado, legitimamente diga-se, por alguns de não me dedicar o suficiente a este palco, de não actualizar com a frequência que se exige as palavras neste teatro e, sendo esta a mais pura e cristalina das verdades, assumo a totalidade da culpa.

o processo e a sentença obrigam-me agora a reflexão séria e a atitude firme. veremos do que sou capaz.

um ano à beira-mar

tudo passa veloz. os locais, as pessoas, as emoções, cada manhã e cada fim de tarde, conjugações de verbos num tempo sempre passado e já vivido. e ficam para nós, em cada um de nós, as memórias na alma e na pele [como cantaria a Mafalda].

a vela que
à beira-mar se levantou conta já com história, construída nas idiossincracias de tantos e tantos marinheiros, em tantas e tantas ondas, numa viagem sempre atenta, verdadeira e pessoal.

a praxe obriga-me a dar os parabéns ao zé luís e, num momento seguinte, o desejo de felicidades no seu novo trabalho, lá
do alto do castelo. são frases feitas, pois são: o verdadeiro significado delas mora no olhar, no abraço amigo.

o teatro, por seu turno, agradece-lhe as palmas (e as palmadas). e pede-lhe que continue, porque, como já se disse, tudo passa, mas nada deixa de ficar gravado seja lá onde for.

segunda-feira, outubro 17, 2005

gotas de sal

quantas mais vezes tentava esboçar um sorriso, mais o teu olhar se confundia com o mar. e nesses instantes entre a realidade e o sonho, quando sei estar perto do fim o céu, nunca conseguirei tirar do dicionário [ou da alma] palavras que cheguem [ou que falem somente].

impotente. o teu sofrimento alimenta a minha inadaptação à dor, aos teus olhos manchados de angústia, ao teu rosto coberto de sal. não fosse a chuva miudinha que, por agora, me lembra o sangue quente que ainda corre e, neste momento, seria uma bola de fogo, de raiva, quem sabe o furacão agreste que [felizmente] nunca senti, rumo à explosão final: um rebentamento de mim.

e por favor – eu sei que consegues – não me fales do sol que vai voltar a nascer. mostra-me antes o brilho dos teus olhos por entre as gotas que te vincam a face. e deixa-me sentir nos teus lábios o sabor da vida, a certeza de que, juntos, duas cerejas inseparáveis, beberemos, já esta noite, essas lágrimas como um cocktail doce, suave e sem álcool.

foto: ["ashes everywhere", sweetcharade, 9.10.05]

terça-feira, agosto 30, 2005

pessoas como pessoa

há pessoas que ainda me conseguem surpreender.

"de branco, de espada e a cavalo", como diz o poeta Alegre. com a coragem dos grandes guerreiros, sem medo das consequências; corpo hirto pronto para a luta. à espera de um som, um único som, seja ele o de uma trombeta, uma sirene, um raio ou o dedilhar de uma viola.

saem de si, revelam ao público o que o espelho há muito guarda para si, e, fruto de uma qualquer varinha de condão, aí estão eles prontos a chorar por ti, por mim, por nós.

com uma língua, a letra "P", livros debaixo do braço, martelo na ponta dos dedos, caneta atrás da orelha, de mil e uma formas, dispostos a fazer de um país [quem sabe de Portugal], de um povo [quem sabe o nosso], de alguma coisa outra coisa ainda melhor.

são pessoas que acreditam e, que com amor, conseguem prolongar os sonhos para lá das madrugadas, através das manhãs de sol.

ainda há gente assim. como nos livros. [e eu procuro desalmadamente essas pessoas]

quinta-feira, agosto 25, 2005

tributo

a indiferença não encontra refúgio em mim. não sou capaz de esquecer. e a revolta sabe a pouco.

ontem, vi a serra a arder outra vez. tive o coração tão pequeno.

felizmente, há anjos que descem à terra. vindos do céu os aviões são aos nossos olhos enviados de Deus. ou de outro Ente qualquer [sempre] muito superior a nós.

e num espaço de esforço, dedicação e profissionalismo ficam só [um só tão imenso] marcas da natureza enfurecida, espicaçada pelos homens: cinzas e lágrimas.

e tudo o que se diga é tão pouco quando há homens que dão a vida para salvar outras vidas. e bens. e tudo o resto.

ontem, a eficiência dos meios (excelente coordenação, rapidez, quantidade e eficiência) mereceu as minhas palmas. e apesar do que ardeu a Serra da Boa Viagem continua verde: a cor da esperança.

segunda-feira, agosto 22, 2005

cinzas

com o passar dos dias ficamos imunes aos rigores das estações. já nada importa, nada faz sentido. as forças da natureza nas mãos dos homens são armas impiedosas. e apesar de, intimamente, me ver julgado a saber as respostas, não consigo evitar a pergunta: porquê?

sobram os olhares tristes dos rostos cansados que deixam cair lágrimas nas cinzas.

António Cruz' 2005 [figueira.net]

quinta-feira, julho 21, 2005

dissonâncias globais

Planeta Terra [Mundo], Século XXI

o Sol lá fora está hoje encoberto / como quem tem vergonha de olhar / mira a medo o Mundo descoberto / e tem medo do que possa mirar

desconfia das grandes plateias ­/ dos sorrisos bem engravatados / e adivinha nos gestos vis teias / ocultas sob discursos inflamados

corpos tratados sob Declarações / dos direitos da gente inchada

que valem em pequenas porções / migalhas de gente numa estrada / percorrida por milhões e milhões

feitos de fome, dor e mais nada

texto: [Ricardo Manuel Santos, 12Mar.03] imagem: [Gwenaël Bollinger, 29Mai.05]

sábado, junho 25, 2005

vindo do céu

venho das estrelas / e desço à realidade / sentado nas asas de um pássaro

gostava de lá viver a eternidade
isolado na paz do prazer / do teu regaço

e há uma gota que me foge / pelo rosto segue / à passagem do tempo
e lá longe fica o teu abraço / numa doce prece / no calor do momento

e as linhas da estrada passam / e o mundo avança / sempre mais triste e triste

o brilho do sonho apagou-se
é lembrança, só lembrança / que em mim existe

e eu vou, tenho que ir sozinho / que o céu sem ti / não fica no meu caminho...

texto: [Ricardo Manuel Santos, 9Set.03] imagem: [Ana Borges, 30Abri.05]

sexta-feira, junho 10, 2005

fragrância azul

submergir. do azul forte, escuro, denso até ao limite das águas. até o sol nos banhar a face, até a pele ganhar a cor e a forma, o corpo o peso e a medida. até nos sentirmos respirar, asas livres sem pressão. sem medo.

a fragrância do azul sabe a mar. tem sal e movimento, tem estrelas, pedras, tem algas e mais sal. dizem que sempre tem sol. dizem que sempre tem força. mas eu acredito que o azul [o mar] também sabe chorar. e tem lágrimas que são gotas, que são nossas, que são minhas, que não são de ninguém.

submergir dos teus vestidos azuis enrolados em mim, presos ao sabor do meu corpo. decifrar a textura do vento, das areias que incomodam até tu chegares, da pele que usas com cheiro de amor. encontrar os teus lábios rubros envergonhados do teu olhar azul.

como o céu e o mar se pintam, nos mergulhos que damos abraçados. e tu, farol, que nos olhas enamorado.

pudera os dias viver só de fragrâncias azuis. como o de hoje.

»» azul C-A #2

sexta-feira, maio 20, 2005

qualquer coisa de bom

são tantas as coisas boas que o Mundo tem para nos oferecer. são tantas.

para ler. “Qualquer coisa de bom”, é bom de se ler. é uma sobremesa sonhada, daquelas que raramente nos vêm à mesa, mas que nunca nos cansamos de imaginar. até ao dia em que, sonho ou não, conseguimos dosear as quantidades certas de moca, chocolate e baunilha e nos servimos a nós próprios de um doce beijo.

para ver e ouvir. fazedores de ambientes, criadores de viagens: marinheiros, aventureiros, sempre os primeiros, em terra ou no mar. recriam auroras, os sons do mar, os pássaros, o vento, entre sinfonias inéditas e clássicas, num abraço caloroso à música, num abraço apertado ao fascínio. o som liso e doce, o som majestoso e forte, de uma centena de instrumentos afinados a uma só voz. a banda da armada, em paz e em terra, num concerto absolutamente encantador.

para sentir. o doce salgado do mar, o prazer dos teus lábios.
porque o Mundo tem muitas coisas belas para nos oferecer. basta estar atento.
das ondas e do mar

quinta-feira, maio 12, 2005

à espera

com a certeza das horas que pintam rugas, vincam gestos e acenam despedidas, fico com a sensação estranha de que o Mundo é incapaz de ser feliz.

nos arvoredos da serra, por entre os ziguezagueados caminhos de asfalto comido, encontro pequenos pedaços de madeira caídos, troncos esquecidos, cavacas sem cavaco e folhas tristes. o chão brilha de vez em quando ao sabor do vento, sorri quando vê o sol.

e na minha paz interior, reflectida nas telas de um Homem capaz de conquistar-se a si próprio, de azul celeste, de vermelho fogo, de cor e de sal, há um infinito medo da próxima manhã. acreditem, sinto medo das falésias, do que acaba e se afunda no mar. medo do sol não me sorrir como hoje.

porque sei que ninguém é feliz eternamente. porque há sempre manhãs doces, amargas, há sempre emoções, dores, beijos, dias, horas. porque me ensinaram o significado de carpe diem, mas não me disseram que viver pode ser tão humanamente mágico.

terça-feira, maio 03, 2005

acreditar

há sonhos que não passam dos primeiros raios de sol. finam-se nas manhãs, perdidos nas loucuras da noite, entre um suspiro e uma estrela mais brilhante. os sonhos não gostam de dúvidas.

senti naquela hora que as minhas lágrimas sabem a sal. pude ver o meu rosto feliz reflectido nas palmas e nos sorrisos da plateia. nos abraços que se seguiram senti o reconhecimento e o cansaço, pela primeira vez, deu lugar à paz.

como é bom ver as luzes que se apagam depois das emoções vividas, depois dos sons nos trazerem de novo ao pequeno teatro. a verdade é que as pancadas de Molière ouviram-se mesmo. o texto batido ao longo dos dias vestiu-se de formas, ganhou voz e soube até questionar a verdade. porque é disso que se trata: uma verdade que dói.

se fosse fadista hoje cantaria. valeu a pena. pois é, vale sempre. porque há deles - os sonhos - que se realizam. basta não desistir e acreditar.

e é isto que, sem dúvidas como nos sonhos, faremos sempre que subirmos ao palco. até que a alma nos doa.

num palco escondido por aí. teatro de amadores, mas só porque quem faz também ama e sofre.

quarta-feira, abril 20, 2005

cansaço

"Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem
"
Sophia de Mello Breyner

nada mais.
só o cansaço. e a certeza de que estás aí. ao meu lado.
tocando-me.

quinta-feira, abril 14, 2005

caminho insofismável

não é nada fácil andar atrás das coisas que nos fogem pelos dedos. como as ondas do mar, o vento, os teus cabelos e as minhas palpitações, o teu sorriso ou os nossos suspiros.

também não é nada fácil ser refém das palavras que roubaste ao mundo, aos dicionários ou à minha boca. como as que ouço pelo ar, como as que dançam, as que choram ou as que fogem da razão.

fácil não é escolher temas para a banda sonora do teu acordar. como os que sonho durante a noite, os que roubo à madrugada, os que canto ao sol ou componho ao luar.

amar-te também não é fácil. porque fáceis são as canções que se dançam, mas não se sentem, que se conhecem, mas que não se guardam.

mas mais difícil ainda era viver sem ti. sem fazer das letras uma frase feita.
caminhos »»

sábado, abril 02, 2005

Palma(s), Jorge

ou o alucinante concerto de um homem alucinado.

o Jorge esteve e não esteve lá. talvez o Palma (ou as palmas) por lá andassem. meio confusas, absortas, entre o real e o imaginário. a verdade é que o concerto aconteceu e será, de facto, muito difícil de esquecer... uma verdadeira alucinação!

ao som do “Norte”, com algumas incursões por histórias mais antigas (e tão ao nosso gosto), o que obtivemos desde o início foi, sem dúvida, um simplesmente “deixa-me rir”... que grande pedrada! mas também o que esperaria o público de alguém que, ao pequeno-almoço, degusta, nada mais, nada menos, que dois ovos estrelados e uma super-bock?

cheguei ainda a questionar a veracidade do palco: têm a certeza de que tudo isto não é encenado? pelos vistos não era, mesmo apesar de, como lembrou o artista, ser dia das mentiras. e, no fim, o que ficou, para além do excelente som na sala e dos bem conseguidos efeitos visuais, foi um Centro de Artes Espectáculos (CAE) “estupidamente” bem disposto.

a questão que fica é: teria o concerto sido tão memorável se Jorge Palma estivesse sóbrio? sinceramente acho que não. o essencial, a música, estava lá. o resto são coisas “que não interessam nada”. where’s next?

quarta-feira, março 30, 2005

sentidos que voam

sabes, sinto-me pássaro. não sei o tom das palavras que me suportam a alma. apenas lhes sinto o tacto e o cheiro e tudo me faz lembrar de ti. ando num voo rasante sobre as ondas...

... constantemente em desequilíbrio e raros são os momentos em que te ouço uma frase completa. há muito que não leio jornais e até o mar se silenciou. caio tantas vezes e levanto-me outras tantas e acabo sempre a chorar e também a rir como uma criança que brinca na rua.

disseste: ohhh amor!... não fosse eu ficar toda vermelha e verias nos meus olhos a resposta à tua pergunta. sorri. não por estares de facto vermelha que nem um tomate, mas porque sabia mesmo a resposta.

sim, essa mesmo: aquela que me trouxe até aqui e me deixou neste estado. um estado pouco católico, diga-se a bem da verdade, até porque nem baptizado deve ter sido. alguém sabe que nome dar ao que sinto?

pois, amor, eu sei: isto é o que dá andar nas nuvens.

(voar)

domingo, março 27, 2005

teatro

Mensagem do Dia Mundial do Teatro

Socorro!
Teatro, vem em meu socorro
Durmo. Acorda-me.
Estou perdido no escuro, guia-me, pelo menos em direcção a uma vela
Estou preguiçosa, envergonha-me
Estou cansado, ergue-me
Estou indiferente, bate-me
Fico indiferente, parte-me a cara
Tenho medo, dá-me coragem
Sou ignorante, educa-me
Sou monstruosa, humaniza-me
Sou pretensioso, mata-me de riso
Sou cínica, confunde-me
Sou imbecil, transforma-me
Sou má, castiga-me
Sou dominante e cruel, combate-me
Sou pedante, troça de mim
Sou vulgar, ensina-me
Sou muda, solta a minha língua
Já não sonho, chama-me cobarde ou imbecil
Esqueci-me, lança sobre mim a Memória
Sinto-me velha e instalada, faz saltar a infância
Estou pesado, dá-me a Música
Estou triste, vai buscar a Alegria
Estou surda, em tempestade faz uivar a Dor
Estou agitado, faz subir a Sensatez
Estou fraca, acende a Amizade
Estou cega, convoca todas as luzes
Estou submetida à fealdade, manda entrar a Beleza conquistadora
Fui recrutada pelo ódio, concede-me todas as forças do Amor.

Ariane Mnouchkine, Encenadora
Tradução de Carmen Santos (enviada pelo Sindicato dos Trabalhadores do Espectáculos), recebida, via e-mail, através do portal ANTA

não resisti. porque hoje é também o meu dia. se bem que o teatro não é de um dia, mas de todos os dias. não resisti. e, como não podia deixar de ser, esta noite vou ao teatro.

sexta-feira, março 25, 2005

velhos

passam os dias e sentes que és um perdedor
já não consegues saber o que tem ou não valor
o teu caminho parece estar mesmo a chegar ao fim
pra dares lugar a outro no teu banco do jardim

mas a alma não tem idade. a alma não comemora aniversários. a alma vive os dias, sente as emoções, chora as horas, sempre da mesma forma.

no ano dos meus noventa anos quis oferecer a mim mesmo uma noite de amor louco com uma adolescente virgem”, escreve-nos Gabriel García Márquez , no seu «Memória das minhas putas tristes». li o livro numa tarde: um elogio à vida, ao amor. o colorido de uma vida, carregada de memórias, enrugada de boémia, rendida aos prazeres do amor. quente, doce, de chocolate. sem idade. sem sexo. só amor.

e não resisti, uma vez mais, à voz da Mafalda Veiga:

o olhar triste e cansado procurando alguém
e a gente passa ao seu lado a olhá-lo com desdém
sabes eu acho que todos fogem de ti
pra não ver a imagem da solidão que irão viver
quando forem como tu
um velho sentado num jardim

velhos são os trapos. e os trapos não sofrem. os trapos não amam.
Mafalda Veiga, Velho,
sentado num banco do jardim

terça-feira, março 22, 2005

casamentos

não imaginava o casamento das acácias com as mesas de madeira de carvalho e os seus bancos corridos, em plena serra. sempre achei que as acácias não deviam ser tocadas, invadidas. tinha até medo de que os olhares pudessem de alguma forma, de qualquer forma, intimidar as pobres acácias, levando-as a assumir uma atitude envergonhada – descolorida, entenda-se.

e os casamentos entre a laranja e o leite provocam dores de barriga. foi o que eu sempre ouvi dizer e o que me levou, até aos dias de hoje, a enjeitar tais degustações por mais vontade que tenha. é certo que até pode ser um manjar dos deuses, mas eu sempre confiei muito na sabedoria popular. não vá o Diabo, ou outro ente qualquer, tecê-las.

depois há os casamentos obrigatórios: cor-de-rosa para as meninas, azul para os meninos. curiosamente, sempre gostei muito do azul. do mar, do céu (e nunca do FC Porto). provavelmente, fruto de uma aprendizagem guiada à rica pelos padrões sociais das cores. felizmente, há hoje em dia a moda das meias às riscas, tipo arco-íris. e os meninos e as meninas podem, finalmente, ser de todas as cores.

a terminar, temos os casamentos humanos. o matrimónio não é mais do que um contrato social que dá direitos e cria deveres, disse-mo a minha professora de Direito. Lembro-me de, naquele momento, me ter arrepiado e mentalmente a ter condenado, muito mais por ser uma mulher a dizê-lo. onde estava a sensibilidade feminina para a causa? hoje dou a mão à palmatória: quem sabe, sabe.

e de casamentos estamos conversados.

sexta-feira, março 18, 2005

terapia do corpo e da mente

esvaziei-me das dores que trazia penduradas ao coração. libertei-as ao vento e gritei as palavras que ouvira dos tempos da revolução francesa: "liberté, égalité, fraternité". o teu sorriso terno apenas me disse aquilo que eu já sabia. nem mais uma palavra: estou louco.

divorciei-me também das palavras que o vento trazia de outras bocas. de línguas ásperas, em nada doces como a tua. fechei-lhes as janelas da minha porta e baptizei a minha vivenda: «vivenda amor». piroso. pois é. deixa lá.

roubei depois ao tempo os ponteiros do relógio e escondi-os debaixo da minha cama. desde esse dia tem-se escondido das rotinas habituais. dos textos e das palavras. eram 2h15, a hora em que te senti no desejo da paixão e ele - o relógio - nunca mais andou.

entreguei-me, por fim, definitivamente nas tuas mãos. sei que agora nada é firme. o apoio do meu corpo resume-se às pétalas que desenham o teu rosto de flor, mas o embalo é meigo. cresci também. perdi o chão, mas, ri-te agora, ganhei o céu.

a terapia diz que a loucura é saudável se a mente souber sorrir dela. poeta eu? não. apenas num estado de felicidade pura. conscientemente. estou louco, pronto.

sábado, fevereiro 26, 2005

felicidade efémera

a felicidade acontece tão pouco / que quando nos bate à porta alegramo-nos / deixamos que nos invada o corpo / e feito pássaros voamos, voamos

para lá do céu azul e maior / vamos sem sermos nós, despidos / das roupas do mundo pior / que nos trazem atados, vestidos

gritamos ao vento que a vida é sol / na praia deitamos a mão ao mar / enroscamo-nos na luz do farol

pescamos na escuridão o luar / e trazemos a felicidade num anzol / até que a manhã nos venha acordar

>> RS/10-06-2003 >>Foto "Segredos da Lua"

terça-feira, fevereiro 22, 2005

acordar

ainda não era manhã. ou pelo menos ainda não havia luz suficiente para poder moldar o brilho do dia ao teu rosto. a tua pele na minha pele. o meu sono perdido nos teus cabelos.

bom dia. sim, vai ser um bom dia. um magnífico dia. até dispenso o pequeno almoço de sumo de laranja natural, croissant misto, doce de marmelada e chocolate. dispenso (repudio até) o relógio despertador, importado de um oriente remoto, que insiste em correr os números e com eles o tempo. e fico aqui. porque aqui está-se bem.

há muito que a tua voz deixou de me falar. apenas distingo as melodias doces que os teus lábios sabem tocar. e as canções são já um mundo de fantasia. dizes-me que "a culpa não é do sol se o meu corpo se queimar". respondo-te que tens razão: "a culpa é da vontade que eu tenho de te abraçar".

não somos nós, somos humanos. e os humanos têm vidas. dispensamo-las. e connosco hão-de ficar os sonhos, hão-de morrer os sonhos, e a vontade de que, onde quer que estejamos, as manhãs sejam de geleia.

e que as manhãs sejam de geleia, sejam de sol, sejam de chuva, sejam de mar, sejam de terra. mas que sejam contigo nos meus braços. porque adormecer assim, amanhecer assim, até parece mentira. tudo mentira até os teus beijos terem sabor de verdade
.

o sono dorme-se aqui. "a culpa é da vontade", Humanos

sábado, fevereiro 12, 2005

antecéu

gosto quando me roubas o corpo e de oferta te dou a alma. e adoro quando passamos as madrugadas a dançar ao som das músicas que compus para ti. e dos beijos que me dás às escondidas da luz.

lá fora, as estrelas tremem de frio e por aqui tu fazes de sol. adoro sentir-e a personagem e arder a teu lado. neste palco de rosas.

uma limonada, um copo de água, um bombom e o jornal diário. a tua foto, o teclado, os documentos para informar e as horas que voam, sem asas, até aos teus lábios. cena após cena, dia após dia.

quando chega a praia e te dás ao mar fazes de onda. e eu espero ansioso na praia até que me toques a pele, para depois me banhar em ti.

neste acto final, o tecto das nossas vidas fez-se de céu. e eu, marioneta do teu amor, adoro pular tocando com os cabelos nas nuvens, sem medo de cair.
porque sei que o teu colo será sempre um bom refúgio.
o céu mora aqui

domingo, fevereiro 06, 2005

sim, eu sei

hoje o sol pôs-se nas minhas mãos. e não sei porquê sinto-me a arder por dentro. desejo este mar que rebenta dentro de mim. e desejo que os dias sejam nas noites o doce dos teus beijos.

sexta-feira, fevereiro 04, 2005

aviso de flores

é preciso avisar toda a gente
dar notícia informar prevenir
que por cada flor estrangulada
há milhões de sementes a florir
é preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
engrossando a verdade corrente
duma força que nada detenha
é preciso avisar toda a gente
que há fogo no meio da floresta
e que os mortos apontam em frente
o caminho da esperança que resta
é preciso avisar toda a gente
transmitindo este morse de dores
é preciso imperioso e urgente
mais flores mais flores mais flores
João Apolinário, in "Morse de Sangue"
flores apanhadas aqui

porque no dia em que começa a campanha para as legislativas de 20 de fevereiro é preciso avisar toda a gente. mais flores mais flores mais flores.

terça-feira, fevereiro 01, 2005

desejo

esta noite vou comemorar o amor
dançar nas ruas como um louco

vou trincar pautas de música
partir pedras e plantar rosas

vou chorar as tuas partidas
incendiar fogueiras de paixão

vou beber dos teus beijos
e dormir do teu sono

vou calar os meus desejos
fazer do amor o meu dono

vou dar corda ao coração
plantar flores no teu peito

dizer sim ao teu silêncio
cobrir de pétalas o chão

vou amar o que não aceito
sonhar-me nos teus lábios

esta noite vou beber licor
e saciar-me do teu corpo

sexta-feira, janeiro 28, 2005

rosto partido

o céu azul também se pinta e chora. quando assim tem de ser.

não aceito escrever para a morada que me indicas. não posso aceitar. a prisão em que habitas não é lugar para ti. vês o sol aos quadradinhos, não é? vês a mesma porta que se abre e fecha todos os dias, não é assim? e desesperas. mas porque não fazes um esforço e sais daí?

acumulas em ti a angústia dos dias. não vives com medo. não aceitas a minha mão. nem a de ninguém. e vejo-te sofrer presa a ti. até quando vai a tua pele suportar as lágrimas que teimas em guardar?

um dia o teu rosto há-de partir. e nessa altura pode ser que já não reste ninguém para apanhar os cacos. é assim tão difícil chorar?

mais um olhar

domingo, janeiro 23, 2005

vermelho

estás a ver o céu vermelho? estou. é a cor da paixão, sabias? sim. sim? e não dizes mais nada só isso!? o vermelho também é a cor do sangue.

por cima fica todo o teu peso. esmagas-me. ocupas-me o espaço. dás-me as asas, mas tiras-me o céu. como queres que voe?

quando vais, o coração dói. dilata de tal maneira que o sinto grande demais para o meu peito franzino. e por cada passo que dás, sempre para mais longe, o coração cresce mais, sempre mais... sim, talvez por isso haja em tudo isto muito vermelho... talvez por isso o teu rosto se dilua nas minhas lágrimas.

como queres que me levante se continuas sentada nas minhas costas? como queres que te encare se me apertas contra o solo? como que queres que grite do cimo da montanha amo-te, se quando a tento subir me pisas de novo?

o sangue é vida. a paixão também. e o que sinto por ti é de que cor?

domingo, janeiro 16, 2005

almas que dançam



o equilíbrio faz dançar a alma. leva-a para lá e para cá, ao sabor do vento, da gente que passa. tenta manter-se de pé. agarrar bandeiras, erguer árvores, lançar foguetes, mas a chuva cai. as lágrimas são demais para um rosto tão pequeno. e dói muito. porque as flores também perderam a cor.

a doença tem nome. cancro. ponto final. é preciso encarar a palavra. como a doença nos encara o corpo numa luta diária. desigual. injusta.

conheci, antes dos testes e exames médicos, a força e a determinação. vi, depois deles, lágrimas nos rostos dos que mais a amavam. e, juro, julguei ter perdido para sempre o seu sorriso.

mas não. porque descobri que a força vive na alma. descobri que os pés só deixam de dançar quando a alma desiste de viver. e ela encara, com a naturalidade dos dias solarengos, o olhar piedoso dos que a observam. e responde, com o desprezo devido às conotações, que a quimioterapia não lhe permite apanhar frio.

tudo tão simples. a doença, a cura. simples demais para tantos de nós. grandioso demais para ela. e reconheço-me na minha pequenez. na nossa pequenez. tão mais infelizes.

não lhe vendo a minha pena, porque não a merece. ofereço-lhe sim a minha mais profunda admiração, na certeza de que, em cada manhã, haverá sempre mais uma dança.

porque os dias não morrem hoje...
foto de Áurea Rico

o leque de lady windermere

as cortinas abriram na escuridão.

entrei na sociedade dos finais do século XIX e deslumbrei-me pelos vestidos delas e pelos fatos deles. a classe é alta, fala-se de duques, condessas e lordes, numa inglaterra fútil e hipócrita.

admiro as expressões carregadas, a ligeireza dos movimentos, a voz sonante. e das falas de Oscar Wilde, o autor, retiro dois momentos preciosos.

"entre um homem e uma mulher não existe amizade". ó meu caro Oscar, felizmente, não vive você nos nossos dias, pois seria obrigado a chamar-lhe, o que seria de uma deselegância actroz, mentiroso. nem mais. digo-lho eu, rapaz novo, mas muito amigo... das suas amigas.

"as palavras são a segunda tragédia. as palavras são de uma crueldade..." ó meu caro Oscar, infelizmente, não vive você nos nossos dias, pois seria obrigado a manifestar-lhe todo o meu apoio. não fossem essas malvadas a desgraça dos nossos dias. as rainhas da má-língua.

e no fim, de sorriso largo, bato palmas. muitas palmas. a cortina reabre novamente para recerbermos os actores em festa. sim, estão de parabéns.

já na saída, retribuo cumprimentos, respiro fundo. um leque. falsidades. hipocrisias. uma mãe infeliz. um marido louco de paixão. a inocência dos vinte e um anos. conselhos e futilidades. a vingança do amor. a vida.

e tudo isto é teatro.

sexta-feira, janeiro 14, 2005

noites interrompidas

era madrugada. na noite o silêncio e nos meus sonhos a tua música. num ápice, os teus acordes são interrompidos por um grito agudo, aflito. e, em cadência, repete-se uma vez mais e outra e ainda outra.

o barulho apressado do quarto ao lado faz-me acordar. as sirenes continuam a tocar. sinto o respirar pesado da minha mãe e a agilidade do meu pai. imagino: primeiro as calças, depois a camisa, o boné, as meias meio calçadas, botas na mão, a porta da rua que se abre e o barulho monstro de cada passo escada abaixo.

levanto-me. a minha mãe revela a preocupação de tantas outras noites. pergunto: onde é que é? não sei, pediram reforços. colados ao vidros, ainda vimos o carro rua acima, piscando de cada um dos seus cantos, numa velocidade cega. num sussurro, ouço a voz da minha mãe: que Deus o leve em bem.

de novo, sob os lençóis, já não ouço a música que tocava. as sirenes calaram-se, mas ficou um zumbido grave nos meus ouvidos. o coração bate. rezo. rezo sempre pelo meu pai. rezo pelos colegas dele. rezo por aqueles a quem caiu a desgraça e não ouvem já o silêncio da noite.

o hábito dos anos soube domesticar a excitação dos momentos. quando acordo, já o sol vai alto, reconheço sempre no rosto de minha mãe mais uma noite roubada ao sono. o pai? rezo pela resposta. pode ser um simples “já está a dormir” ou um preocupado “não sei, ainda não voltou”.

pai, onde foi o fogo? e ele lá relata os acontecimentos, os meios usados, os perigos. tem na voz a coragem e no olhar o cansaço dos anos atrás das chamas. invejo-o. a ele e aos que, diariamente, dão a vida para salvar vidas. tantos por esse país fora. invariavelmente, esquecidos. invariavelmente, arredados dos sonhos. invariavelmente, afastados das noites em que acordo para o ver sair.

ser bombeiro é a tua glória e o meu orgulho. obrigado, pai. acredita que as noites acordadas são sempre a recompensa das que passaste acordado por mim. lembras-te, pai? faz hoje anos que a tua luta por mim começou. o dia em que deixaste as sirenes tocar e foste a correr para a maternidade ver o teu bébé.
a verdade, pai, é que os parabéns que hoje recebi não são meus, são teus. por tudo o que és.
foto de alessandro maucci

quarta-feira, janeiro 12, 2005

ensaio primeiro

a cortina permacene fechada.

gosto dos guiões. riscados, rabuscados, anotados, cheios de notas e de músicas. gosto do ar aparvalhado de cada um dos actores diante da sua nova vida. gosto de os ver sugar em cada folha uma nova emoção, uma lágrima, um sorriso ou uma gargalhada. gosto dos projectos, das maquetes, dos cenários que se sonham, ainda no papel. gosto dos figurinos. a cores e mais ainda a preto e branco. gosto.

gosto de distribuir vidas. saber que, nos próximos meses, o Bruno, o Paulo, a Teresa, a Susana, a Guida, o Alfredo, a Andreia e o Vítor vão habitar uma nova aldeia, num novo tempo. o tempo e o espaço que são ainda hoje e só palavras. palavras minhas.

quiseram por-me à prova. desta és tu que vais connosco. se o mundo é teu, as nossas vidas (das personagens, claro) tuas são. aceitei. em troca dar-me-ão eles as emoções. a mim e ao público.

gosto de estar feliz. gosto do apoio dos actores e dos técnicos. gosto de saber das nossas experiências passadas e bem sucedidas. gosto de aventuras. mas não gosto nada de estar cheio de medo.

sábado, janeiro 08, 2005

pano do pó

suspenso na atmosfera, percorri com a brisa os campos, pinhais e serranias, dancei com as árvores e as areias do mar, pousei nas nuvens, nas gotas de água e em pétalas de rosas. fui livre, caminhei voluntariamente ao sabor do vento, fiz parte do mundo, do ar. fui substância que existe, que se move, que se aconchega em cada canto para logo a seguir ser pena ou tinta. até ao dia em que caí no teu colo.

indiferente, sacudiste a tua saia, era seda preta, e, bêbado do teu cheiro, rolei pelo ar até que caí na superfície branca da tua mesinha de cabeceira. ali estive dias e dias, vendo-te dormir. vendo-te em cada manhã, cada vez mais bonita, cada vez mais leve, cada vez mais preso ao teu olhar meigo. era pó no reino dos sonhos. sonhos meus que se prendiam ao teu corpo, no teu quarto.

manhã de Inverno, vestido frio, lábios suaves, houve outras mãos em ti. estranhei a luz que corta e magoa. e reconheci-me na tua escova espelhada, esquecida ao lado do candeeiro de madeira escura. era pedaço de nada no teu mundo, apenas pó. pó na tua vida.

e hoje, perdido nas chuvas ácidas, entrego ao sono a arca da memória que trago comigo. por vezes, ainda sonho e descubro novamente aquele dia em que senti, pela primeira vez, a suavidade das tuas mãos contra o calor da flanela quente.
para fazeres de mim pó. esquecido entre os panos que cobrem o teu corpo.

sexta-feira, janeiro 07, 2005

valeu a pena

a subida à montanha nunca é fácil. quantas não são as barreiras, os buracos escondidos pelos arbustos, o suor que escorre, a garganta seca, o cansaço, os pés que não querem mais. mas o melhor está lá em cima, mesmo no cume. é lá que eu quero chegar. é lá que eu quero estar. é de lá que venho hoje. do cimo da montanha. das nuvens. da certeza de que valeu a pena. as horas, os minutos, a dedicação a um projecto que se tinha possível, mas árduo. por isso, a satisfação pessoal é hoje o prato do dia. e acreditem que, uma vez lá em cima, o mundo cá em baixo ganha novo sentido. porque é preciso voltar a descer e subir novas montanhas todos os dias. mas isso vem depois, porque hoje descansa o guerreiro. feliz. deixem-me pois gozar os vossos sorrisos. os sorrisos que encontramos no princípio da descida em forma de reconhecimento. e para tudo isto basta darmo-nos às causas e viver a vida intensamente.

domingo, janeiro 02, 2005

a questão

2005

o país das perguntas, de Fernando Penim Redondo

e agora? quem responde às perguntas de 2004?

sábado, janeiro 01, 2005

sede de ti

o sol hoje não acordou cedo como muitos de nós. ficou perdido nos sonhos, enleado ainda pelos ritmos dançantes da noite, vagueando, através do sono, pela multidão que festejava. eu andei ontem na sua companhia e à noite, já sem o ver, qual criança a quem prometeram amor, esperei por ti. ansiava pela tua chegada, pelo teu sorriso descarado, pelo teu cheiro, pela tua pele suada e doce. ansiava os teus lábios num beijo de festa! romperam no céu as cores, abriram-se milhares de garrafas e entrou o novo ano. eu também festejei... na esperança de mais uma noite contigo. mas com a música, frenética, alegre, contagiante, voaram as horas. e de ti apenas um simples sms. nada mais.
castigo? talvez. fui eu que te fiz o mesmo há exactamente um ano. fui eu que não apareci, fui eu que te deixei sozinha, atada a esse amor. e mesmo assim tu voltaste sempre. até hoje. e na consciência pesa a certeza de que o "nós" é tão passado como o velho ano. porque há coisas que a razão desconhece e eu não conheço a razão.
e agora que faço eu de mim? vou procurar o sol e talvez ele, por esses dias, me indique alguém a quem eu possa entregar este amor que me deixaste de herança.

no palco da vida

Escondo-me por trás da máscara.
Entro no palco da vida sorrindo...
O público me aplaude... Meu íntimo chora.
O espetáculo continua...

Um choro incontido, alma sufocada.
Incorporo um personagem, a sessão vai começar.
No teatro da vida já não sinto mais o chão...
Choro baixinho... Os minutos são eternos,
As horas longas...Dia fatídico;

Já é hora de retornar...
Refugio-me na escuridão do meu quarto,
Em silêncio busco uma razão,
Arranco a máscara que me sufoca.
Já posso chorar livremente...

O silêncio se quebra, a porta se abre...
O coração dispara, não posso disfarçar;
Preciso dos teus beijos, estou carente de você...
Sem forças para lutar, desfaleço...
No devaneio dos meus sonhos, em seus braços,
sacio a sede te amar.

Ana Alice Zanettini

de volta a mim

depois da magia, das estrelas, das cores no céu, da euforia, dos copos cheios, dos líquidos multicolores, do ritmo alucinante dos dias, da festa e da dança, sinto finalmente o corpo. estou de volta a mim. serenamente de volta.
e, usando expressões de toda a gente para toda a gente, ano novo, vida nova.
os desafios são os mesmos. as promessas as mesmas. os sonhos os mesmos. no entanto, tudo parece novo. tudo ganha novas formas e o ânimo sai redobrado. 2oo4 para 2005. o espaço de um minuto para o outro, como em tantos outros dias ao longo do ano. todavia, esta noite é diferente. os homens pelo menos assim o pensam. e quem sou eu para contrariar...
a provar isso mesmo, lavei a cara do teatro. não sei se gosto mais ou menos. está diferente pronto.
quanto às palavras que nele habitam... as palavras jamais morrem, ad eternum...

Que os versos não se apaguem
onde o tempo arrefece

E que a mensagem dure
para lá da vida

Que o corpo as traças comem
e a alma sempre se esquece

Mas a lápide consagra
a palavra que é querida
(19/06/2000)
e um novo tempo começa!