sexta-feira, novembro 24, 2006

day dream

noite fria, Inverno rigoroso, um passo a mais, o luxo do mármore polido, os cadeirões de veludo, o aconchego da luz ténue, o piano, o contrabaixo, o saxofone e a bateria.

um ambiente de sofá caseiro, entre amigos e chás. corpos inebriados deixam-se levar, agasalhados, recolhidos, por uma voz quente e aconchegante e simples. o deleite das almas rendidas ao jazz, melodioso, quente, improvisado e enriquecido, transformando a noite escura e fria num verdadeiro ‘day dream’.

Jacinta. a voz e o sonho. o canto incorporado num abraço fechado partilhado com um quarteto humano de fiéis músicos. o encanto, a “canção de embalar” e o prazer do serão embrulhados e guardados na memória como prenda aos sentidos.

sábado, novembro 18, 2006

a entrevista

o galardão de melhor entrevista da semana, a existir, vai direitinha para o nosso honorável nobel da literatura, José Saramago, que em entrevista ao «Sol» nos brinda com o que de melhor tem o ser humano livre e (in)consciente, ou talvez não. basta uma simples página e uma imprevista entrevista para ficarmos a saber o que pensa este grande português do nosso país e do mundo.

comecemos pela oposição, cujo líder [Marques Mendes] lhe “parece uma coisa estranha” (!?) e que afirma só seria um bom primeiro-ministro se a cadeira do poder lhe provocasse “uma revolução hormonal”. será? quanto a Santana Lopes espera “que se explique às crianças como se pode chegar a primeiro-ministro sendo um imbecil”. e mais nada!

este senhor também não fala, nem cumprimenta o Senhor Presidente desta República, cujo sistema político apelida de plutocracia, ou seja, o governo dos ricos para os mais ignorantes.

depois pede encarecidamente ao incauto jornalista para não lhe contar os euros arrecadados com o prémio nobel e arremata com uma verdade basilar: não é Sócrates quem nos governa! “não é?”, questiona incrédulo o entrevistador, e eis a pronta resposta: “de onde você veio? de que planeta caiu?” sim, porque, quem manda – e muito bem dito! – são os grupos económicos e as multinacionais.

a terminar, ficamos a saber que “nunca houve comunismo no mundo” e a conhecer o gosto de Saramago pela inversão de posições entre entrevistador e entrevistado: “não gosta da palavra ‘globalização’”?, quer saber o escritor. o jornalista diz que não tem nada contra e pronto: “era só para saber”, afiança o nobel.

eis o retrato fiel de alguém que, aos 84 anos, ainda aí está para as curvas. porque quem fala assim, não é gago, não senhor.

sexta-feira, novembro 10, 2006

declaração de guerra

estou em guerra aberta. sem contemplações. coloquei a armada em marcha e agora só voltarei a ter paz no dia em que a vitória for alcançada. e o inimigo destruído.

pensei recorrer a várias formas de luta: comprimidos para emagrecer, ginástica com personal trainer, dietas rigorosas, tudo, tudo para vencer o inchaço estupidamente desconfortável que teimou em crescer, tornando saliente a minha adorável barriguinha.

desde o princípio da semana estou por isso em guerra. não sou adepto de armas sofisticadas, ao jeito das classes média e alta, e optei antes pela forma mais ancestral de todas. infelizmente, a mais dolorosa também.

a declaração só sai hoje porque os combates não têm dado tréguas. os músculos já se sentem, mas eu não vou desistir. a arte da “pedreiragem” tem o seu quê de desgraçado e cruel, contudo tenho a certeza que servirá caprichosamente a minha causa.

se eu resistir até lá, claro.
imagem: [Carlos Vilela]

sexta-feira, novembro 03, 2006

crónica do homem da gravata

são às dezenas as folhas moribundas depositadas no solo. jazem amarelecidas, ressequidas, viúvas e tristes. são como almas sem vida, corpos sem alma, sopros sem rosto. matéria morta à disposição do homem da gravata.

os homens também caem como as folhas. depositados no meio de tantos outros, um entre tantos, um número apenas. são como almas sem vida, corpos sem alma, sopros sem rosto. matéria viva à disposição do homem da gravata.

dispõe o homem da gravata do homem caído e das folhas mortas porque se abriga no tronco da árvore-mãe. sem pejo do sofrimento perfura a carne e instala-se depois no cepo oco. e fuma confortavelmente de nós.

o homem da gravata só não sabe que também a árvore morrerá um dia.
imagem: [«Outono», Ricardo Manuel Santos]