terça-feira, novembro 22, 2005

no silêncio do olhar

angústia e revolta. à minha frente um buraco negro, fechado numa circunferência de metal, dita-me, sem piedade, um futuro que já não é este, mas outro. diferente, sempre diferente.

por dentro ferve uma revolta contida, azedasse-me o olhar e sinto picos de dor dentro da minha cabeça. não está nas minhas mãos [nestas mãos a quem devo a obra] moldar o rio que, enfurecido, se estende na minha direcção.

impotente, aqui fico. espero de pé, mas sou incapaz de não chorar. a frieza dos números são gelo dentro de mim. há um corpo e sangue quente aqui! mas parece que ninguém se lembra...

sinto-me marioneta anónima à espera da dor final, carimbada e assinada como na Idade Média. tento erguer a armadura da maturidade, mas, por mais que me esforce, são as lágrimas que me vencem.

foto: ["silêncios de um olhar", António Araújo, 13.07.05]

domingo, novembro 20, 2005

a biografia dos perfumes


leio a biografia da grande menina [“Mademoiselle Chanel”] nos lábios, na voz e nos gestos da grande senhora [Marília Pêra]. em palco o glamour e o talento reflectem-se nas palmas do público.

da vida [e do texto] uma conclusão: o importante não é amar para viver. antes viver para amar. tudo e todos.

o pano ainda está aberto, os projectores pintam as tábuas de azul e o céu da solidão que pinta o cenário de branco devolve-nos a imagem dos espelhos.

porque o teatro é sempre um mar por desbravar. mais ainda porque é domingo e lá fora chove, criando lagos perfeitos para as caravelas da nossa imaginação.

quinta-feira, novembro 17, 2005

...


a saber: as flores mesmo sem pétalas não deixam de ser flores. podem perder a arte, mas não deixam de alimentar as abelhas.
e há [acreditem, há!] pessoas assim: como flores e como abelhas.
foto: [Paulo Medeiros, 17.10.05]

segunda-feira, novembro 14, 2005

delicioso crime

deixei-me tentar. fui, vi e gostei.

excelentes desempenhos, pormenores de fotografia notáveis e uma realização (de Carlos Coelho da Silva) ao nível do que melhor se tem feito no país e no estrangeiro. assumidamente comercial, não deixa de abanar consciências e dar umas dentadas na hipocrisia eclesiástica. não deixa de ser corajosa esta conseguida eliminação dos tabus pela [sétima] arte.
o país [cultural] está de parabéns. por mais irónico que, socialmente, isto pareça ser.

quarta-feira, novembro 09, 2005

a alegoria do poeta

«Em breve há que atingir o vazio / da memória e nela persistir. Até que / livre das máscaras que nos corpos fui / venha, última, a surdez das vozes».
Orlando Neves

vinha escrito numa página de jornal, a preto e branco [como um verdadeiro jornal], sujando os dedos de carvão. não era destaque, mas, pelo menos, vinha noticiado: a morte das palavras. desconheciam-se as causas e os locais. apenas aquela certeza inaudita.

no dia seguinte, o jornal não se publicou. também não houve processo instrutório, julgamento ou acusação. o mundo calou-se. a voz perdeu o tom, as coisas perderam nome e os significados deixaram de fazer sentido. como num fado mudo, a canção do nada invadiu o céu, as poças de água e as chávenas do café.

suicidaram-se os poetas, choraram, desolados, os que sonhavam e os loucos deixaram de se sentir crianças. no silêncio dos dias seguintes o incógnito assassino viu-se, sem saber porquê, a morrer de solidão.

segunda-feira, novembro 07, 2005

como um vulcão

« Au cours de la nuit de dimanche à lundi, la 11ème de violences urbaines, 1.408 véhicules ont été incendiés et 395 personnes ont été interpellées en France, (…) le plus lourd depuis le 27 octobre. »
par Patricia Tourancheau, Libération: lundi 07 novembre 2005

são às centenas as feridas queimadas pelo fogo num desejo, absurdamente justo, de justiça. as televisões dão-nos as imagens, mas jamais nos darão os corações, a fome ou a discriminação. por fora do globo mostra-se, hoje, o que há muito queima por dentro. como um vulcão

sábado, novembro 05, 2005

ocaso

chego ao fim dos actos com um sorriso roubado ao orgulho.

sei que será talvez hoje o dia de mais um fim. o ocaso de uma história que, ao longo do último ano, viveu lado a lado com a minha, absorvendo o mesmo ar, cultivando as mesmas memórias, dando lugar às mesmas tristezas e alegrias.

hoje, de cima do palco, receberei, talvez, as últimas palmas devidas a este lugar e a esta gente. assino hoje [assinamos todos] o divórcio destas palavras que, semana após semana, se ouviram com a nossa voz e se soltaram por aí ao encontro das lágrimas que, sentidas, foram surgindo.

procuraremos novas cores, novas flores, novas auroras por aí. outras palavras se acharão ao nosso lado e os olhares e o corpo serão livres de novos amores. é a vida do teatro e dessas personagens inquietas que são os actores.

apagam-se os sons, fecham-se as luzes, o acto acabou. aos que nele souberam acreditar, viver, sorrir e chorar, deixo um coração feliz. roubo à plateia um último abraço fechado e dou por encerrado este céu que, esta noite, se fecha por cima de nós. definitivamente, não estou triste, mas não consigo evitar já uma lágrima de saudade.
foto: ["entre vocês me despeço...", Susana Ribeiro, 01.11.05]

quinta-feira, novembro 03, 2005

quando o céu também chora

gosto de ouvir os desabafos do tempo. quando ele, por entre as rajados do vento norte, traz até mim as recordações da criança que já fui. que brincava entre as árvores do quintal, indiferente à chuva e aos ralhetes da avó Maria.

até ao dia em que o céu chorou comigo. o meu balão vermelho rebentou contra o espinho de uma roseira que, todos os dias, me cumprimentava no caminho de terra batida, entre a minha casa e a quinta lá em cima. chorei como a criança que era.

o tempo ficou ainda mais triste. e a chuva, até ao fim da viagem, dançou no meu rosto com o sal da minha tristeza. criando em mim caminhos sem tempo e sem destino, que, triste, ainda hoje escuto, "numa dor que nunca cabe e faz transbordar os dias" [Mafalda Veiga].
foto: ["limite", simone, 16.08.05]

terça-feira, novembro 01, 2005

o dia de cada coisa

recebo da invernia as bofetadas do vento e as carícias agrestes das ondas do mar de quando em vez. vou, por ali, como relógio decidido, rebuscando nos passos as incertezas, vivas pela dor, que a alma teima em alojar. gosto de pensar que o mar poderá ser um dia o lar das minhas feridas. por isso vou.

vejo à porta do cemitério uma invulgar agitação. amontoam-se os carros e as pessoas, de flores e guarda-chuva nas mãos. ah, pois, hoje é dia de finados! o dia em que todos nos lembramos de “visitar” os entes queridos que, pela lei da vida ou contra ela, já se finaram.

estranho, no mínimo. há um dia para cada coisa importante na nossa vida: dia da mulher, do pai, da mãe ou até dos avós; dia dos direitos do homem, da luta contra o cancro; dia da árvore, da criança, de Portugal e de todos os santos. dias que aproveitamos para, a reboque da comunicação social, reflectir, comprar um presente ou levar a efeito uma leitura mais exaustiva sobre o assunto em destaque. como se, para além dessas datas, nos nossos dias tão ocupados, as pessoas que amamos e as coisas importantes da vida não tivessem a importância que merecem.

ao escutar as gaivotas preocupadas – em terra que o mar está agitado –, procuro no calendário, desenhado na areia, o dia do riso: o dia em que, talvez, tivéssemos coragem de rir de nós próprios. e assim fui e voltarei a ir todos os dias, porque sem o mar desta cidade a minha vida não teria a mesma cor.
foto: ["o nosso mar...", Cristina do Vale e Vasconcelos, 21. 10.05]