sexta-feira, dezembro 29, 2006

anos passados

Dezembro 2006
no término do calendário ocidental vem o frio de Dezembro e com ele o inventário, tão certo quanto banal, dos gelos e degelos do ano moribundo. confesso-me perdido. o tempo servido em bandejas de incerteza levou-me a conhecer um mar diferente. hoje, os sonhos já não têm as cores de criança e as verdades doem mais do que as feridas. neste momento, qual barco à deriva, apenas quero descobrir um cais onde me abrigar. depois chorarei. talvez sejam estas as tempestades de que falavam os sábios e os anciãos. entretanto, talvez consiga aprender a ser feliz.

Dezembro 2005
à beira de novo salto, reconheço a poesia das metáforas: gosto de cais diferentes, na ânsia da descoberta e da aventura que novas terras sabem oferecer, mas não consigo esquecer que, por força das amarras, é sempre o mesmo navio que navega, ano após ano, independentemente das marés, dos faróis e das estrelas-do-mar que, ao lado do casco, nos vão clareando o cabelo.

Dezembro 2004
apanhado de surpresa pela fúria dos acontecimentos, acabei engolido pelo tempo. quando dei por mim já lá ia uma semana inteirinha sem plateia, sem teatro, sem palavras. apenas a vida. nua e dura. o trabalho, as reuniões, as iniciativas, os preparativos para tudo e para nada, a busca de sonhos, a realização de outros, horas, minutos, segundos tão fugazes como a vida. e hoje, qual peça trágico-cómica, dizem-me que acabou mais um ano. e assim é.
imagem: [«olhares de carinho», Fernando Leão]

sexta-feira, dezembro 15, 2006

manhãs

os dias têm verdades muito diferentes. se há manhãs em que na esfera celeste se adivinham novas formas de canto, outras há em que até o chilrear dos pássaros nos parecem gritos aflitivos. as árvores podem ser demónios entrelaçados com a terra ou apenas e só o belo quadro de um pintor renascentista. os olhos da nossa alma gostam de diversificar as cores, detestam a monotonia dos lugares e transformam-nos.

por isso quando me apetece chorar, choro. quando me apetece rir, rio. sei que os momentos passam como as gotas da chuva e que as emoções são tão inconstantes como as ondas do mar. nunca sabemos quando nos vão molhar os pés ou se, tão simplesmente, adormecem lá longe.

é Inverno.
e de vez em quando o sol também brilha.
imagem: ["Nascer do sol", de Rui Santos]

sexta-feira, dezembro 08, 2006

reminiscências


pouca-terra, pouca-terra, o comboio seguia sempre no seu ritmo cadenciado e infantil, pouca-terra, pouca-terra, cumprimentando as gentes e os locais, de apeadeiro em apeadeiro, enquanto eu ia sentado junto à janela, observando as imagens do mundo lá fora que aparecia e desaparecia num pequeno fechar de olhos.

o meu coração de menino também fazia pouca-terra, pouca-terra, ansioso por quem o esperava no destino lá longe, sedento daquele sorriso doce. ainda hoje fecho os olhos e imagino-te com a roupa de outras vezes e é inevitável sentir o calor dos teus lábios junto dos meus, num arrepio que faz querer viver até à eternidade.

passeávamos sempre no mesmo jardim, de mão dada, namorávamos junto ao lago, como dois pombinhos apaixonados, ao lado de outro pombinhos extasiados, vigiados pelos outros pombinhos que debicam do chão miolo de pão.

ao lanche dois panikes de chocolate e duas ucais naturais aconchegavam o estômago, revolto de êxtase, enquanto trocávamos olhares cúmplices e fazíamos planos para o futuro. e só não foi sempre assim porque descobrimos que a imaturidade e a distância são arqui-inimigos da felicidade eterna.

agora, de volta ao mesmo lugar, encontro o comboio parado na estação. as cores estão mais desbotadas. ou então talvez seja eu num lugar diferente. distante das emoções, despido de menino apaixonado, com uma única certeza na mão: tu não estás à minha espera. e tudo me parece tão diferente.
imagem: [«se desejar fosse ser...», de Hugo]

sexta-feira, dezembro 01, 2006

caminho(s)

abertos os olhos e o que vejo é a imensa estrada ziguezagueando vegetação adentro, ladeada pelas coisas da serra e da cidade mais ao fundo. continuo a conduzir devagarinho e continua também o desfilar incessante das coisas e das loisas que me ocupam o pensamento, já de si demasiado ocupado com tantas outras coisas e loisas que a vida nele foi depositando.

não encontro razão para a solidão que me acompanha silenciosa no banco do pendura, nem lhe acho atractivo demasiado belo para o inaudito convite que a fez tomar a minha companhia nestes caminhos intermináveis pelas horas do passado, sem ti e contigo, ou ainda pelos trilhos diários em busca da incessante resposta à pergunta que não sei fazer.

vou e simplesmente não sei porquê. julgo a minha vida vazia como a estrada e talvez antes preferisse acompanhar-te num hipermercado apinhado de ratos consumistas na febre encantada das compras de natal ou então esperar, naquela esplanada junto ao mar, pelas imperiais fresquinhas que os camaradas da boémia já pediram enquanto se babam, como eu me babo, admirando os anjos e os diabos, de corpo esbelto e provocante, que se passeiam entre as mesas, ou então talvez não preferisse nada disso. afinal, a pouca certeza das muitas incertezas é que tudo me escapa pelos dedos e o que fica é o pouco que este corpo ocupa.

o caminho continua e a gasolina gasta-se como o tempo, agora que ambos estão tão caros, enquanto a espera desalmada e o ruído do silêncio me incomodam e servem os pérfidos interesses da insatisfação que de mim se serve como se eu não fosse mais do que um simples parque de diversão. talvez ainda chore antes de chegar.
imagem: ["caminhos", de Ricardo Manuel Santos]

sexta-feira, novembro 24, 2006

day dream

noite fria, Inverno rigoroso, um passo a mais, o luxo do mármore polido, os cadeirões de veludo, o aconchego da luz ténue, o piano, o contrabaixo, o saxofone e a bateria.

um ambiente de sofá caseiro, entre amigos e chás. corpos inebriados deixam-se levar, agasalhados, recolhidos, por uma voz quente e aconchegante e simples. o deleite das almas rendidas ao jazz, melodioso, quente, improvisado e enriquecido, transformando a noite escura e fria num verdadeiro ‘day dream’.

Jacinta. a voz e o sonho. o canto incorporado num abraço fechado partilhado com um quarteto humano de fiéis músicos. o encanto, a “canção de embalar” e o prazer do serão embrulhados e guardados na memória como prenda aos sentidos.

sábado, novembro 18, 2006

a entrevista

o galardão de melhor entrevista da semana, a existir, vai direitinha para o nosso honorável nobel da literatura, José Saramago, que em entrevista ao «Sol» nos brinda com o que de melhor tem o ser humano livre e (in)consciente, ou talvez não. basta uma simples página e uma imprevista entrevista para ficarmos a saber o que pensa este grande português do nosso país e do mundo.

comecemos pela oposição, cujo líder [Marques Mendes] lhe “parece uma coisa estranha” (!?) e que afirma só seria um bom primeiro-ministro se a cadeira do poder lhe provocasse “uma revolução hormonal”. será? quanto a Santana Lopes espera “que se explique às crianças como se pode chegar a primeiro-ministro sendo um imbecil”. e mais nada!

este senhor também não fala, nem cumprimenta o Senhor Presidente desta República, cujo sistema político apelida de plutocracia, ou seja, o governo dos ricos para os mais ignorantes.

depois pede encarecidamente ao incauto jornalista para não lhe contar os euros arrecadados com o prémio nobel e arremata com uma verdade basilar: não é Sócrates quem nos governa! “não é?”, questiona incrédulo o entrevistador, e eis a pronta resposta: “de onde você veio? de que planeta caiu?” sim, porque, quem manda – e muito bem dito! – são os grupos económicos e as multinacionais.

a terminar, ficamos a saber que “nunca houve comunismo no mundo” e a conhecer o gosto de Saramago pela inversão de posições entre entrevistador e entrevistado: “não gosta da palavra ‘globalização’”?, quer saber o escritor. o jornalista diz que não tem nada contra e pronto: “era só para saber”, afiança o nobel.

eis o retrato fiel de alguém que, aos 84 anos, ainda aí está para as curvas. porque quem fala assim, não é gago, não senhor.

sexta-feira, novembro 10, 2006

declaração de guerra

estou em guerra aberta. sem contemplações. coloquei a armada em marcha e agora só voltarei a ter paz no dia em que a vitória for alcançada. e o inimigo destruído.

pensei recorrer a várias formas de luta: comprimidos para emagrecer, ginástica com personal trainer, dietas rigorosas, tudo, tudo para vencer o inchaço estupidamente desconfortável que teimou em crescer, tornando saliente a minha adorável barriguinha.

desde o princípio da semana estou por isso em guerra. não sou adepto de armas sofisticadas, ao jeito das classes média e alta, e optei antes pela forma mais ancestral de todas. infelizmente, a mais dolorosa também.

a declaração só sai hoje porque os combates não têm dado tréguas. os músculos já se sentem, mas eu não vou desistir. a arte da “pedreiragem” tem o seu quê de desgraçado e cruel, contudo tenho a certeza que servirá caprichosamente a minha causa.

se eu resistir até lá, claro.
imagem: [Carlos Vilela]

sexta-feira, novembro 03, 2006

crónica do homem da gravata

são às dezenas as folhas moribundas depositadas no solo. jazem amarelecidas, ressequidas, viúvas e tristes. são como almas sem vida, corpos sem alma, sopros sem rosto. matéria morta à disposição do homem da gravata.

os homens também caem como as folhas. depositados no meio de tantos outros, um entre tantos, um número apenas. são como almas sem vida, corpos sem alma, sopros sem rosto. matéria viva à disposição do homem da gravata.

dispõe o homem da gravata do homem caído e das folhas mortas porque se abriga no tronco da árvore-mãe. sem pejo do sofrimento perfura a carne e instala-se depois no cepo oco. e fuma confortavelmente de nós.

o homem da gravata só não sabe que também a árvore morrerá um dia.
imagem: [«Outono», Ricardo Manuel Santos]

domingo, outubro 29, 2006

condução perigosa

o vento açoita-me a face impiedosamente enquanto perscruto o horizonte na incessante busca de respostas. tenho esta necessidade intrínseca de querer saber o que existe por baixa da areia da praia, para lá das águas salgadas e da crosta terrestre. eu sei que há – tem que haver! – uma energia qualquer presa entre as placas teutónicas que nos faz andar cá em cima neste completo desatino, bêbados de emoção, alienados da realidade.

o poeta que me acompanha deu-lhe um apelido curto e simples. fala em quatro letras e num termo que qualquer aluno da quarta classe facilmente faria rimar com dor, calor, ardor ou mistério. a verdade é que para os que se dizem adultos esta palavra é mais difícil de compreender [e aceitar] do que para qualquer criança.

entre uma partida e uma chegada, as ondas trazem-me o som abafado e quente do Represas, descrevendo com uma simplicidade extrema a complexidade dos meus sentimentos. diz ele que “às vezes até parece que amamos fora de mão”. o certo é que mesmo sabendo do risco de ficar irrevogavelmente inibido de conduzir existe esta força gravitacional que me impede de fazer inversão de marcha.
imagem: [Cris]

sexta-feira, outubro 20, 2006

música no coração

à entrada somos recebidos pelo mestre. de lapiseira em punho, autografa os programas do espectáculo, cumprimentando calorosamente os seus convidados. sim, para ele a hora é de festa e cada espectador um convidado especial.

já na sala, o veludo encarnado esconde o que está para lá da cortina, naquele faustoso espaço apinhado de gente, carente de música, de cor, fantasia e espectáculo. carente de sonho e de verdade.

à hora marcada ouve-se a música de Richard Rodgers para logo a seguir surgir no palco Maria [Anabela/Lúcia Moniz] com as palavras de Óscar Hammersteins II e o início da caminhada pela vida da austríaca família Von Trapp.

é um verdadeiro motor de emoções este “Música no Coração” de Filipe La Féria.

na memória fica a magnificência da cenografia, a minudência dos adereços (que nos deixam boquiabertos como um espectacular Mercedes dos anos 30 que literalmente nos entra pelo palco dentro), a qualidade das vozes, a grandeza das melodias, o talento dos artistas e a genialidade de La Feria.

um misto de grande beleza e profissionalismo, num encantamento que nos deixa extasiados e nos leva aos melhores momentos do cinema. sem dúvida, um musical imperdível.

sexta-feira, outubro 13, 2006

endividamento


as novas experiências de vida levaram-me a conhecer outras formas de se estar nesta vida, que obrigatoriamente partilhamos neste mundo que infelizmente é como é. ponto final.

formas de estar que cultivam a desresponsabilização e fazem a apologia do facilitismo, na busca dos sonhos que a madrugada traz. contudo, estas madrugadas são lixadas, porque, no fundo, lixam-nos os dias (e assim dito para não ter que usar vocábulos passíveis de ferir susceptibilidades).

e depois quando o buraco está demasiado grande, damos por nós a despertar. gritamos a pedir ajuda, culpamos este e o outro mundo, caluniamos a sociedade – essa malvada senhora! -, mas raramente temos coragem de enfrentar o espelho. e a ajuda, como se sabe, não chega a ninguém despenteado.
imagem: [«...», de Sérgio Redondo]

sexta-feira, outubro 06, 2006

sapos & indigestões

desta vez resolvi calar as frases que na garganta queimam. diz quem sabe que os sapos engolidos provocam indigestões, mas não matam. eu sinto-me mal, acho que não vou morrer, mas enjoo com o cheiro dos vómitos, o que me faz vomitar cada vez mais e mais.

após a indigesta refeição – nem me falem em pernas de rã! –, apanhei um avião e desembarquei nas ilhas Fiji. a minha mãe obrigou-me a regressar na manhã dessa mesma madrugada, porque eu não tinha levado a escova de dentes. ao espelho, achei-me mais gordo.

por esta altura, estou cada vez mais histérico. não é que não tenha medo de ninguém – porque quem tem o que eu e todos têm tem medo –, mas não me vou calar mais. pode correr mal, pois pode!, mas pelo menos tenho a certeza de que passarei a dormir de consciência tranquila. e sem indigestões.
imagem: ["s/t", de Alexandre P.]

sexta-feira, setembro 29, 2006

à 6.ª

com o cair da semana chegam os balanços e as balanças. raramente choro à sexta-feira, com as devidas excepções aos serões preenchidos pelos dramas da sétima arte europeia – aquelas sessões em que o fungar da vizinha da cadeira ao lado incomoda mais que o ruminar das pipocas às cores.

a semana trouxe os aguaceiros, algumas descobertas intrigantes no campo pessoal, com profunda incidência para o caroço que insiste em crescer junto à nuca, a certeza crescente de que este governo é uma fraude política e a dolorosa notícia, publicada numa revista da especialidade, que dá conta do romance entre a Soraia Chaves e o Rodrigo Menezes – conclusão final: o mundo é demasiado injusto.

por isso, esta noite vou beber uns copos com os amigos e ficar a ver passar as miúdas, maquilhadas e sorridentes, passeando os seus decotes provocantes e empenhando, qual guerreiras ao ataque, o copo de safari com sumo de laranja, em pleno desafio às nossas alienadas hormonas.

à vista delas, talvez esqueça a semana e os processos que ficaram pendentes para segunda. que o papa reze por nós e que os do outro mundo não o ouçam.
imagem: [“salsa”, Liliana]

terça-feira, agosto 15, 2006

ao vento

a camisa que esvoaça ao vento, presa na corda de nylon, faz-me lembrar o teu corpo que dança. leve, hábil e firme. acena ao mesmo tempo que as folhas das árvores e curva-se com as flores vermelhas, azuis, lilases e brancas do jardim da vizinha. a tua alma escondida numa camisa de dormir.

ontem a camisa ficou aos pés da cama. ao meu lado apenas o teu corpo delgado, escurecido pelo sol, de pele aveludada e quente. adormeci aninhado nos teus cabelos, desfrutando do prazer dos teus beijos, meio loucos, meio sérios. o suor deu lugar à lua que nos espreitava embevecida através da janela semiaberta.

esta manhã, lá fora, o céu faz desenhos de algodão. a brisa lembra os castelos fantásticos e, na minha imaginação, aguardo a chegada da fada-madrinha. talvez sejas tu, que me sorris, secando os cabelos molhados com a toalha que comprámos em Albufeira. lá fora já não há lua. apenas a tua camisa a recordar o teu cheiro.

segunda-feira, agosto 14, 2006

casca de laranja

por passos perdidos pisei uma casca de laranja. do chão emergiu o aroma forte e agrume dos citrinos frescos. o perfume de essências naturais que revestem a tua pele assaltou-me os sentidos.

cobri o teu corpo de Carnaval. a laranja serviu de mote ao fato que envergaste naquela noite sem céu nem estrelas. sorrio ao pensar que parecias um m&m’s inchado de chapéu verde na cabeça.

ao pequeno-almoço o sumo natural deixou a mesa cheia de cascas laranjas. o sol despertava preguiçoso e tu sonhavas na minha cama. a fragrância despertou as emoções e os teus olhos semiabertos sorriram. o sumo derramado sobre os lençóis ficou a testemunhar o amor dos nossos corpos.

hoje continua o passeio indiferente e o odor intenso da casca de laranja dissolve-se no ar. porque tudo se extingue de nós, até o amor e o prazer.

sábado, agosto 12, 2006

ad eternum

desafio o novelo dos últimos meses e coro pelo que vivi, faminto de querer viver cada vez mais. a demente insatisfação que cultiva os meus dias fere-me de morte e sara as feridas do passado. a insanidade da alma já deixou de ser uma doença e regista agora o título de característica humana. essa vontade louca de se ter o que não se pode e amar o que não se deve. porque não nos cabe a nós visar o mundo, mas só e apenas flutuar por cima das águas, ao sabor dos ventos e das marés. um dia a praia há-de embater no casco e já seremos nós apenas corpo sem vida, sob a vigia das estrelas e o pranto das mulheres.
imagem: ["Espero-te!!", de Sérgio Rodrigo]

terça-feira, abril 18, 2006

a solidão é um canto do meu quarto que gosto de habitar. no escuro das noites mal dormidas costumo apertar-me no espaço que fica entre o branco sujo das paredes e ali respirar um pouco de calma e de silêncio. é como um abraço meigo a lembrar o regaço da minha mãe nas tardes soalheiras de Outono.

sabe bem ficar assim sozinho com os sentidos desligados do mundo, a usufruir dos sons e dos cheiros do nosso corpo enroscado sobre si mesmo. de vez em quando sinto uma lágrima desorientada que me percorre o rosto triste. e mesmo sem saber porquê gosto de a lamber e sentir o sal amargo na boca.

nem tudo na vida tem que ter uma explicação. e esta sede de solidão faz parte de mim como o sonho cor-de-rosa de te amar um dia. guardo o canto escuro na palma da mão e rebenta em mim esta vontade louca de chorar.
imagem: ["o frio da solidão", Ramon Pereira de Assis]

sábado, abril 01, 2006

outra vez

o mar azul-esverdeado espraiava-se à sua frente como um lençol de seda disposto a acolher os corpos que se amam, loucamente, num jogo de sedução entre a volúpia e o desejo. a areia escaldante lembrava o sol abrasador que, lá do alto, vigiava, através dos seus raios cor de fogo, os movimentos na praia. e o seu olhar demorado, triste, contrastava com a alegria das ondas que como crianças corriam para lá e para cá, continuamente, sem sinal de cansaço.

inesperadamente, ou talvez não, uma mão poisou-lhe delicadamente sobre o ombro como uma pena que, vagarosamente, se deixa embalar pela suave dança da brisa marítima até cair, como algodão sobre veludo, nas águas mansas de um lago. o seu ritmo cardíaco disparou e dentro de si rebentou um turbilhão de sentimentos.

ela não precisou desviar o olhar das águas mansas à sua frente; sabia que aquele toque representava o fim da ansiedade que lhe apertava o peito e um motivo mais que forte para se deixar de lágrimas e suspiros. o amor, tantas vezes reprimido até ali, tocava-lhe, despia-se perante ela, fazendo com que a sua pele se arrepiasse num extâse mudo, e deixava antever um pôr-do-sol muito mais doce.
imagem: ["Angelwings On The Water", de Miguel]

segunda-feira, março 27, 2006

dia mundial do teatro: a mensagem

UM RAIO DE ESPERANÇA por Víctor Hugo Rascón-Banda
Todos os dias deveriam ser Dias Mundiais do Teatro, porque nestes 20 séculos, a chama do teatro tem ardido constantemente nalgum canto do mundo.
Ao teatro, sempre se decretou a morte, sobretudo com o aparecimento do cinema, da televisão e, agora, dos meios digitais. A tecnologia invadiu os cenários e aniquilou a dimensão humana, tentou-se um teatro plástico, próximo da pintura em movimento, que substituiu a palavra. Houve obras sem palavras, ou sem luz ou sem actores, somente máquinas e bonecos numa instalação com múltiplos jogos de luzes. A tecnologia tentou converter o teatro em fogo de artifício ou em espectáculo de feira.
Hoje assistimos ao regresso do actor em frente do espectador. Hoje presenciamos o retorno da palavra ao palco. O teatro renunciou à comunicação massiva e reconheceu os seus próprios limites que lhe impõem a presença de dois seres frente a frente comunicando sentimentos, emoções, sonhos e esperanças. A arte cénica está a deixar de contar histórias para debater ideias.
O teatro comove, ilumina, incomoda, perturba, exalta, revela, provoca, transgride. É uma conversa partilhada com a sociedade. O teatro é a primeira das artes que se confronta com o nada, as sombras e o silêncio para que surjam a palavra, o movimento, as luzes e a vida.
O teatro é um ser vivo que se consome a si mesmo enquanto se produz, mas constantemente renasce das cinzas. É uma comunicação mágica na qual cada pessoa dá e recebe algo que a transforma.
O teatro reflecte a angústia existencial do Homem e revela a condição humana. Através do teatro, não falam os seus criadores, mas a sociedade do seu tempo.
O teatro tem inimigos visíveis, a ausência de educação artística na infância, que impede a sua descoberta e o seu usufruto; a pobreza que invade o mundo, afastando os espectadores, e a indiferença e o desprezo dos governos que deviam promovê-lo.
No teatro falavam os deuses e os homens, mas agora o homem fala para outros homens. Para isso o teatro tem de ser maior e melhor que a própria vida. O teatro é um acto de fé no valor de uma palavra sensata num mundo demente. É um acto de fé nos seres humanos que são responsáveis pelo seu destino.
É necessário viver o teatro para entender o que se passa, para transmitir a dor que está no ar, mas também para vislumbrar um raio de esperança no caos e pesadelo quotidianos.
Longa vida aos oficiantes do rito teatral! Viva o teatro!
Tradução: Instituto das Artes - Gabinete de Teatro e Gabinete de Comunicação

sexta-feira, março 17, 2006

à espera

à espera. ali, encostada ao ferro negro e frio, à espera do corpo que há-de chegar. sonhas os teus lábios agora brilhantes saciados de outros que, por agora e por entre as árvores, vêem assobiando ao sabor da tarde que passa devagar.

à espera. aí, na quietude dos dias, à espera que o azul do céu dê lugar ao manto negro das estrelas. e, por dentro, fervem as lâmpadas na ansiedade dessa hora em que, milagrosamente, o filamento de tungsténio, enrolado em forma de bobina para melhor concentrar o calor, se torna incandescente.

à espera. o candeeiro, que por agora não ilumina e apenas serve de encosto ao seu corpo de mulher, à espera do olhar do fotógrafo que, à luz do dia, viu sonhar as lâmpadas, ainda apagadas, na certeza seguinte de um abraço meigo.

vieram depois os beijos e à espera ficaram os dias.
imagem: [«lâmpadas que sonham», de Ricardo Manuel Santos]

sábado, março 11, 2006

crepúsculo

às vezes é difícil aceitar o que o corpo e a alma insistem em dizer. há sempre coisas e loisas a mais para lá do que devíamos riscar nas folhas em branco. há sempre ponteiros por perto e uma preguiça inconfessável por dentro.

a somar a tudo isto há ocasos. os momentos em que, tristes, por mais estúpido que possa ser, nos deparamos com o muro da morte. o muro intransponível dos nossos medos e dos nossos receios. o muro de nós.

este teatro roubou palavras aos dicionários, embalou cenas, escutou bandas sonoras, bateu e recebeu palmas. depois de em três meses, apenas três posts é altura de repensar os próximos espectáculos. o teatro não fecha, por isso, definitivamente as portas, mas encerra para ensaios.

até novas tintas se espalharem pelo ecrã e com elas nascer a cor em novos cenários, vou estar nos bastidores para conversar, de uma forma informal e mais pessoal. fora das tábuas do palco darei, prometo, conta das cenas em destaque, pontualmente, neste teatro das palavras.

um sorriso.
imagem: ["Alma Grande", peça de teatro pelo grupo "O Bando"]

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

smile

recorro frequentemente aos sorrisos para me sentir melhor. gosto de os apanhar nas dobras das ondas ou de os recolher, como tantas vezes, da beira da estrada, onde, mendigos, esperam uma boleia.

considero-os uma forma barata de me auto-medicar contra o avesso dos dias.

e se aos olhos dos velhos ditados populares serei rapaz de pouco siso, aos olhos do céu talvez seja asa livre de voar ou criança feliz.

porque a vida não permite compaixões avulsas, a loucura de que se veste a minha pele é um antídoto.

em nome de uma paixão, de um simples beijo, um afago ou apenas de um respirar mais demorado.

imagem: ["...she's got a secret smile...", Ricardo "TattooDevil" Costa]

sexta-feira, janeiro 27, 2006

saudade

“dói-me a pele.”
torno a ouvir as palavras que te ouvi naquela madrugada glaciar. doía-te a pele, enregelada, fria como a morte, morta que estava a chama que nos incendiou aos dois. os teus olhos já não eram os mesmos e até os sabores do pequeno-almoço da véspera se escondiam agora, receosos dos momentos bons que se faziam memória. o passado escrevia-se com verbos no presente e as chamadas de horas custavam agora a fazer, traídas pela distância exacta dos metros que nos separavam.
aquele vento gélido voltou hoje. as minhas mãos isentas de sangue tocaram as teclas do telemóvel ao som de um sms recebido. o teu nome estava lá, a dar-se à lembrança, a dar-se ao pensamento, como se, por milagre divino, a meteorologia controlasse os afectos. volto a pensar em ti. o teu sorriso meigo e doce; o teu rosto de porcelana, pintado à mão por delicadas mãos de artesão; a tua ingenuidade escondida; a tua maturidade fingida; tudo isso que me levou um dia a amar-te. e a não deixar esquecer.
o sms nada revela. vem branco como a história dos nossos dias. tenho frio. e sabes, dói-me a pele também.
imagem [olhares]

terça-feira, janeiro 03, 2006

diana


vinte e nove de novembro, pôr-do-sol.

há um sorriso que nasce, enquanto o sol de Inverno se esconde nas águas do oceano frio. dou por mim mais feliz que uma criança. canto por dentro, tremo por fora e não sei porquê sinto-me diferente. já és tio, dizem-me mesmo ali. padrinho, reforço eu.

parabéns, pais babados. felicidades, Diana.