sexta-feira, dezembro 29, 2006

anos passados

Dezembro 2006
no término do calendário ocidental vem o frio de Dezembro e com ele o inventário, tão certo quanto banal, dos gelos e degelos do ano moribundo. confesso-me perdido. o tempo servido em bandejas de incerteza levou-me a conhecer um mar diferente. hoje, os sonhos já não têm as cores de criança e as verdades doem mais do que as feridas. neste momento, qual barco à deriva, apenas quero descobrir um cais onde me abrigar. depois chorarei. talvez sejam estas as tempestades de que falavam os sábios e os anciãos. entretanto, talvez consiga aprender a ser feliz.

Dezembro 2005
à beira de novo salto, reconheço a poesia das metáforas: gosto de cais diferentes, na ânsia da descoberta e da aventura que novas terras sabem oferecer, mas não consigo esquecer que, por força das amarras, é sempre o mesmo navio que navega, ano após ano, independentemente das marés, dos faróis e das estrelas-do-mar que, ao lado do casco, nos vão clareando o cabelo.

Dezembro 2004
apanhado de surpresa pela fúria dos acontecimentos, acabei engolido pelo tempo. quando dei por mim já lá ia uma semana inteirinha sem plateia, sem teatro, sem palavras. apenas a vida. nua e dura. o trabalho, as reuniões, as iniciativas, os preparativos para tudo e para nada, a busca de sonhos, a realização de outros, horas, minutos, segundos tão fugazes como a vida. e hoje, qual peça trágico-cómica, dizem-me que acabou mais um ano. e assim é.
imagem: [«olhares de carinho», Fernando Leão]

sexta-feira, dezembro 15, 2006

manhãs

os dias têm verdades muito diferentes. se há manhãs em que na esfera celeste se adivinham novas formas de canto, outras há em que até o chilrear dos pássaros nos parecem gritos aflitivos. as árvores podem ser demónios entrelaçados com a terra ou apenas e só o belo quadro de um pintor renascentista. os olhos da nossa alma gostam de diversificar as cores, detestam a monotonia dos lugares e transformam-nos.

por isso quando me apetece chorar, choro. quando me apetece rir, rio. sei que os momentos passam como as gotas da chuva e que as emoções são tão inconstantes como as ondas do mar. nunca sabemos quando nos vão molhar os pés ou se, tão simplesmente, adormecem lá longe.

é Inverno.
e de vez em quando o sol também brilha.
imagem: ["Nascer do sol", de Rui Santos]

sexta-feira, dezembro 08, 2006

reminiscências


pouca-terra, pouca-terra, o comboio seguia sempre no seu ritmo cadenciado e infantil, pouca-terra, pouca-terra, cumprimentando as gentes e os locais, de apeadeiro em apeadeiro, enquanto eu ia sentado junto à janela, observando as imagens do mundo lá fora que aparecia e desaparecia num pequeno fechar de olhos.

o meu coração de menino também fazia pouca-terra, pouca-terra, ansioso por quem o esperava no destino lá longe, sedento daquele sorriso doce. ainda hoje fecho os olhos e imagino-te com a roupa de outras vezes e é inevitável sentir o calor dos teus lábios junto dos meus, num arrepio que faz querer viver até à eternidade.

passeávamos sempre no mesmo jardim, de mão dada, namorávamos junto ao lago, como dois pombinhos apaixonados, ao lado de outro pombinhos extasiados, vigiados pelos outros pombinhos que debicam do chão miolo de pão.

ao lanche dois panikes de chocolate e duas ucais naturais aconchegavam o estômago, revolto de êxtase, enquanto trocávamos olhares cúmplices e fazíamos planos para o futuro. e só não foi sempre assim porque descobrimos que a imaturidade e a distância são arqui-inimigos da felicidade eterna.

agora, de volta ao mesmo lugar, encontro o comboio parado na estação. as cores estão mais desbotadas. ou então talvez seja eu num lugar diferente. distante das emoções, despido de menino apaixonado, com uma única certeza na mão: tu não estás à minha espera. e tudo me parece tão diferente.
imagem: [«se desejar fosse ser...», de Hugo]

sexta-feira, dezembro 01, 2006

caminho(s)

abertos os olhos e o que vejo é a imensa estrada ziguezagueando vegetação adentro, ladeada pelas coisas da serra e da cidade mais ao fundo. continuo a conduzir devagarinho e continua também o desfilar incessante das coisas e das loisas que me ocupam o pensamento, já de si demasiado ocupado com tantas outras coisas e loisas que a vida nele foi depositando.

não encontro razão para a solidão que me acompanha silenciosa no banco do pendura, nem lhe acho atractivo demasiado belo para o inaudito convite que a fez tomar a minha companhia nestes caminhos intermináveis pelas horas do passado, sem ti e contigo, ou ainda pelos trilhos diários em busca da incessante resposta à pergunta que não sei fazer.

vou e simplesmente não sei porquê. julgo a minha vida vazia como a estrada e talvez antes preferisse acompanhar-te num hipermercado apinhado de ratos consumistas na febre encantada das compras de natal ou então esperar, naquela esplanada junto ao mar, pelas imperiais fresquinhas que os camaradas da boémia já pediram enquanto se babam, como eu me babo, admirando os anjos e os diabos, de corpo esbelto e provocante, que se passeiam entre as mesas, ou então talvez não preferisse nada disso. afinal, a pouca certeza das muitas incertezas é que tudo me escapa pelos dedos e o que fica é o pouco que este corpo ocupa.

o caminho continua e a gasolina gasta-se como o tempo, agora que ambos estão tão caros, enquanto a espera desalmada e o ruído do silêncio me incomodam e servem os pérfidos interesses da insatisfação que de mim se serve como se eu não fosse mais do que um simples parque de diversão. talvez ainda chore antes de chegar.
imagem: ["caminhos", de Ricardo Manuel Santos]