sexta-feira, janeiro 28, 2005

rosto partido

o céu azul também se pinta e chora. quando assim tem de ser.

não aceito escrever para a morada que me indicas. não posso aceitar. a prisão em que habitas não é lugar para ti. vês o sol aos quadradinhos, não é? vês a mesma porta que se abre e fecha todos os dias, não é assim? e desesperas. mas porque não fazes um esforço e sais daí?

acumulas em ti a angústia dos dias. não vives com medo. não aceitas a minha mão. nem a de ninguém. e vejo-te sofrer presa a ti. até quando vai a tua pele suportar as lágrimas que teimas em guardar?

um dia o teu rosto há-de partir. e nessa altura pode ser que já não reste ninguém para apanhar os cacos. é assim tão difícil chorar?

mais um olhar

domingo, janeiro 23, 2005

vermelho

estás a ver o céu vermelho? estou. é a cor da paixão, sabias? sim. sim? e não dizes mais nada só isso!? o vermelho também é a cor do sangue.

por cima fica todo o teu peso. esmagas-me. ocupas-me o espaço. dás-me as asas, mas tiras-me o céu. como queres que voe?

quando vais, o coração dói. dilata de tal maneira que o sinto grande demais para o meu peito franzino. e por cada passo que dás, sempre para mais longe, o coração cresce mais, sempre mais... sim, talvez por isso haja em tudo isto muito vermelho... talvez por isso o teu rosto se dilua nas minhas lágrimas.

como queres que me levante se continuas sentada nas minhas costas? como queres que te encare se me apertas contra o solo? como que queres que grite do cimo da montanha amo-te, se quando a tento subir me pisas de novo?

o sangue é vida. a paixão também. e o que sinto por ti é de que cor?

domingo, janeiro 16, 2005

almas que dançam



o equilíbrio faz dançar a alma. leva-a para lá e para cá, ao sabor do vento, da gente que passa. tenta manter-se de pé. agarrar bandeiras, erguer árvores, lançar foguetes, mas a chuva cai. as lágrimas são demais para um rosto tão pequeno. e dói muito. porque as flores também perderam a cor.

a doença tem nome. cancro. ponto final. é preciso encarar a palavra. como a doença nos encara o corpo numa luta diária. desigual. injusta.

conheci, antes dos testes e exames médicos, a força e a determinação. vi, depois deles, lágrimas nos rostos dos que mais a amavam. e, juro, julguei ter perdido para sempre o seu sorriso.

mas não. porque descobri que a força vive na alma. descobri que os pés só deixam de dançar quando a alma desiste de viver. e ela encara, com a naturalidade dos dias solarengos, o olhar piedoso dos que a observam. e responde, com o desprezo devido às conotações, que a quimioterapia não lhe permite apanhar frio.

tudo tão simples. a doença, a cura. simples demais para tantos de nós. grandioso demais para ela. e reconheço-me na minha pequenez. na nossa pequenez. tão mais infelizes.

não lhe vendo a minha pena, porque não a merece. ofereço-lhe sim a minha mais profunda admiração, na certeza de que, em cada manhã, haverá sempre mais uma dança.

porque os dias não morrem hoje...
foto de Áurea Rico

o leque de lady windermere

as cortinas abriram na escuridão.

entrei na sociedade dos finais do século XIX e deslumbrei-me pelos vestidos delas e pelos fatos deles. a classe é alta, fala-se de duques, condessas e lordes, numa inglaterra fútil e hipócrita.

admiro as expressões carregadas, a ligeireza dos movimentos, a voz sonante. e das falas de Oscar Wilde, o autor, retiro dois momentos preciosos.

"entre um homem e uma mulher não existe amizade". ó meu caro Oscar, felizmente, não vive você nos nossos dias, pois seria obrigado a chamar-lhe, o que seria de uma deselegância actroz, mentiroso. nem mais. digo-lho eu, rapaz novo, mas muito amigo... das suas amigas.

"as palavras são a segunda tragédia. as palavras são de uma crueldade..." ó meu caro Oscar, infelizmente, não vive você nos nossos dias, pois seria obrigado a manifestar-lhe todo o meu apoio. não fossem essas malvadas a desgraça dos nossos dias. as rainhas da má-língua.

e no fim, de sorriso largo, bato palmas. muitas palmas. a cortina reabre novamente para recerbermos os actores em festa. sim, estão de parabéns.

já na saída, retribuo cumprimentos, respiro fundo. um leque. falsidades. hipocrisias. uma mãe infeliz. um marido louco de paixão. a inocência dos vinte e um anos. conselhos e futilidades. a vingança do amor. a vida.

e tudo isto é teatro.

sexta-feira, janeiro 14, 2005

noites interrompidas

era madrugada. na noite o silêncio e nos meus sonhos a tua música. num ápice, os teus acordes são interrompidos por um grito agudo, aflito. e, em cadência, repete-se uma vez mais e outra e ainda outra.

o barulho apressado do quarto ao lado faz-me acordar. as sirenes continuam a tocar. sinto o respirar pesado da minha mãe e a agilidade do meu pai. imagino: primeiro as calças, depois a camisa, o boné, as meias meio calçadas, botas na mão, a porta da rua que se abre e o barulho monstro de cada passo escada abaixo.

levanto-me. a minha mãe revela a preocupação de tantas outras noites. pergunto: onde é que é? não sei, pediram reforços. colados ao vidros, ainda vimos o carro rua acima, piscando de cada um dos seus cantos, numa velocidade cega. num sussurro, ouço a voz da minha mãe: que Deus o leve em bem.

de novo, sob os lençóis, já não ouço a música que tocava. as sirenes calaram-se, mas ficou um zumbido grave nos meus ouvidos. o coração bate. rezo. rezo sempre pelo meu pai. rezo pelos colegas dele. rezo por aqueles a quem caiu a desgraça e não ouvem já o silêncio da noite.

o hábito dos anos soube domesticar a excitação dos momentos. quando acordo, já o sol vai alto, reconheço sempre no rosto de minha mãe mais uma noite roubada ao sono. o pai? rezo pela resposta. pode ser um simples “já está a dormir” ou um preocupado “não sei, ainda não voltou”.

pai, onde foi o fogo? e ele lá relata os acontecimentos, os meios usados, os perigos. tem na voz a coragem e no olhar o cansaço dos anos atrás das chamas. invejo-o. a ele e aos que, diariamente, dão a vida para salvar vidas. tantos por esse país fora. invariavelmente, esquecidos. invariavelmente, arredados dos sonhos. invariavelmente, afastados das noites em que acordo para o ver sair.

ser bombeiro é a tua glória e o meu orgulho. obrigado, pai. acredita que as noites acordadas são sempre a recompensa das que passaste acordado por mim. lembras-te, pai? faz hoje anos que a tua luta por mim começou. o dia em que deixaste as sirenes tocar e foste a correr para a maternidade ver o teu bébé.
a verdade, pai, é que os parabéns que hoje recebi não são meus, são teus. por tudo o que és.
foto de alessandro maucci

quarta-feira, janeiro 12, 2005

ensaio primeiro

a cortina permacene fechada.

gosto dos guiões. riscados, rabuscados, anotados, cheios de notas e de músicas. gosto do ar aparvalhado de cada um dos actores diante da sua nova vida. gosto de os ver sugar em cada folha uma nova emoção, uma lágrima, um sorriso ou uma gargalhada. gosto dos projectos, das maquetes, dos cenários que se sonham, ainda no papel. gosto dos figurinos. a cores e mais ainda a preto e branco. gosto.

gosto de distribuir vidas. saber que, nos próximos meses, o Bruno, o Paulo, a Teresa, a Susana, a Guida, o Alfredo, a Andreia e o Vítor vão habitar uma nova aldeia, num novo tempo. o tempo e o espaço que são ainda hoje e só palavras. palavras minhas.

quiseram por-me à prova. desta és tu que vais connosco. se o mundo é teu, as nossas vidas (das personagens, claro) tuas são. aceitei. em troca dar-me-ão eles as emoções. a mim e ao público.

gosto de estar feliz. gosto do apoio dos actores e dos técnicos. gosto de saber das nossas experiências passadas e bem sucedidas. gosto de aventuras. mas não gosto nada de estar cheio de medo.

sábado, janeiro 08, 2005

pano do pó

suspenso na atmosfera, percorri com a brisa os campos, pinhais e serranias, dancei com as árvores e as areias do mar, pousei nas nuvens, nas gotas de água e em pétalas de rosas. fui livre, caminhei voluntariamente ao sabor do vento, fiz parte do mundo, do ar. fui substância que existe, que se move, que se aconchega em cada canto para logo a seguir ser pena ou tinta. até ao dia em que caí no teu colo.

indiferente, sacudiste a tua saia, era seda preta, e, bêbado do teu cheiro, rolei pelo ar até que caí na superfície branca da tua mesinha de cabeceira. ali estive dias e dias, vendo-te dormir. vendo-te em cada manhã, cada vez mais bonita, cada vez mais leve, cada vez mais preso ao teu olhar meigo. era pó no reino dos sonhos. sonhos meus que se prendiam ao teu corpo, no teu quarto.

manhã de Inverno, vestido frio, lábios suaves, houve outras mãos em ti. estranhei a luz que corta e magoa. e reconheci-me na tua escova espelhada, esquecida ao lado do candeeiro de madeira escura. era pedaço de nada no teu mundo, apenas pó. pó na tua vida.

e hoje, perdido nas chuvas ácidas, entrego ao sono a arca da memória que trago comigo. por vezes, ainda sonho e descubro novamente aquele dia em que senti, pela primeira vez, a suavidade das tuas mãos contra o calor da flanela quente.
para fazeres de mim pó. esquecido entre os panos que cobrem o teu corpo.

sexta-feira, janeiro 07, 2005

valeu a pena

a subida à montanha nunca é fácil. quantas não são as barreiras, os buracos escondidos pelos arbustos, o suor que escorre, a garganta seca, o cansaço, os pés que não querem mais. mas o melhor está lá em cima, mesmo no cume. é lá que eu quero chegar. é lá que eu quero estar. é de lá que venho hoje. do cimo da montanha. das nuvens. da certeza de que valeu a pena. as horas, os minutos, a dedicação a um projecto que se tinha possível, mas árduo. por isso, a satisfação pessoal é hoje o prato do dia. e acreditem que, uma vez lá em cima, o mundo cá em baixo ganha novo sentido. porque é preciso voltar a descer e subir novas montanhas todos os dias. mas isso vem depois, porque hoje descansa o guerreiro. feliz. deixem-me pois gozar os vossos sorrisos. os sorrisos que encontramos no princípio da descida em forma de reconhecimento. e para tudo isto basta darmo-nos às causas e viver a vida intensamente.

domingo, janeiro 02, 2005

a questão

2005

o país das perguntas, de Fernando Penim Redondo

e agora? quem responde às perguntas de 2004?

sábado, janeiro 01, 2005

sede de ti

o sol hoje não acordou cedo como muitos de nós. ficou perdido nos sonhos, enleado ainda pelos ritmos dançantes da noite, vagueando, através do sono, pela multidão que festejava. eu andei ontem na sua companhia e à noite, já sem o ver, qual criança a quem prometeram amor, esperei por ti. ansiava pela tua chegada, pelo teu sorriso descarado, pelo teu cheiro, pela tua pele suada e doce. ansiava os teus lábios num beijo de festa! romperam no céu as cores, abriram-se milhares de garrafas e entrou o novo ano. eu também festejei... na esperança de mais uma noite contigo. mas com a música, frenética, alegre, contagiante, voaram as horas. e de ti apenas um simples sms. nada mais.
castigo? talvez. fui eu que te fiz o mesmo há exactamente um ano. fui eu que não apareci, fui eu que te deixei sozinha, atada a esse amor. e mesmo assim tu voltaste sempre. até hoje. e na consciência pesa a certeza de que o "nós" é tão passado como o velho ano. porque há coisas que a razão desconhece e eu não conheço a razão.
e agora que faço eu de mim? vou procurar o sol e talvez ele, por esses dias, me indique alguém a quem eu possa entregar este amor que me deixaste de herança.

no palco da vida

Escondo-me por trás da máscara.
Entro no palco da vida sorrindo...
O público me aplaude... Meu íntimo chora.
O espetáculo continua...

Um choro incontido, alma sufocada.
Incorporo um personagem, a sessão vai começar.
No teatro da vida já não sinto mais o chão...
Choro baixinho... Os minutos são eternos,
As horas longas...Dia fatídico;

Já é hora de retornar...
Refugio-me na escuridão do meu quarto,
Em silêncio busco uma razão,
Arranco a máscara que me sufoca.
Já posso chorar livremente...

O silêncio se quebra, a porta se abre...
O coração dispara, não posso disfarçar;
Preciso dos teus beijos, estou carente de você...
Sem forças para lutar, desfaleço...
No devaneio dos meus sonhos, em seus braços,
sacio a sede te amar.

Ana Alice Zanettini

de volta a mim

depois da magia, das estrelas, das cores no céu, da euforia, dos copos cheios, dos líquidos multicolores, do ritmo alucinante dos dias, da festa e da dança, sinto finalmente o corpo. estou de volta a mim. serenamente de volta.
e, usando expressões de toda a gente para toda a gente, ano novo, vida nova.
os desafios são os mesmos. as promessas as mesmas. os sonhos os mesmos. no entanto, tudo parece novo. tudo ganha novas formas e o ânimo sai redobrado. 2oo4 para 2005. o espaço de um minuto para o outro, como em tantos outros dias ao longo do ano. todavia, esta noite é diferente. os homens pelo menos assim o pensam. e quem sou eu para contrariar...
a provar isso mesmo, lavei a cara do teatro. não sei se gosto mais ou menos. está diferente pronto.
quanto às palavras que nele habitam... as palavras jamais morrem, ad eternum...

Que os versos não se apaguem
onde o tempo arrefece

E que a mensagem dure
para lá da vida

Que o corpo as traças comem
e a alma sempre se esquece

Mas a lápide consagra
a palavra que é querida
(19/06/2000)
e um novo tempo começa!