
era madrugada. na noite o silêncio e nos meus sonhos a tua música. num ápice, os teus acordes são interrompidos por um grito agudo, aflito. e, em cadência, repete-se uma vez mais e outra e ainda outra.
o barulho apressado do quarto ao lado faz-me acordar. as sirenes continuam a tocar. sinto o respirar pesado da minha mãe e a agilidade do meu pai. imagino: primeiro as calças, depois a camisa, o boné, as meias meio calçadas, botas na mão, a porta da rua que se abre e o barulho monstro de cada passo escada abaixo.
levanto-me. a minha mãe revela a preocupação de tantas outras noites. pergunto: onde é que é? não sei, pediram reforços. colados ao vidros, ainda vimos o carro rua acima, piscando de cada um dos seus cantos, numa velocidade cega. num sussurro, ouço a voz da minha mãe: que Deus o leve em bem.
de novo, sob os lençóis, já não ouço a música que tocava. as sirenes calaram-se, mas ficou um zumbido grave nos meus ouvidos. o coração bate. rezo. rezo sempre pelo meu pai. rezo pelos colegas dele. rezo por aqueles a quem caiu a desgraça e não ouvem já o silêncio da noite.
o hábito dos anos soube domesticar a excitação dos momentos. quando acordo, já o sol vai alto, reconheço sempre no rosto de minha mãe mais uma noite roubada ao sono. o pai? rezo pela resposta. pode ser um simples “já está a dormir” ou um preocupado “não sei, ainda não voltou”.
pai, onde foi o fogo? e ele lá relata os acontecimentos, os meios usados, os perigos. tem na voz a coragem e no olhar o cansaço dos anos atrás das chamas. invejo-o. a ele e aos que, diariamente, dão a vida para salvar vidas. tantos por esse país fora. invariavelmente, esquecidos. invariavelmente, arredados dos sonhos. invariavelmente, afastados das noites em que acordo para o ver sair.
ser bombeiro é a tua glória e o meu orgulho. obrigado, pai. acredita que as noites acordadas são sempre a recompensa das que passaste acordado por mim. lembras-te, pai? faz hoje anos que a tua luta por mim começou. o dia em que deixaste as sirenes tocar e foste a correr para a maternidade ver o teu bébé.
a verdade, pai, é que os parabéns que hoje recebi não são meus, são teus. por tudo o que és.
foto de alessandro maucci